Tião Xoxota fala sobre o velho sol com Amélia

Nonato Reis*

Amélia caminhava na picada aberta no matagal que separa o Porto do Padre e o Canal da Mutuca. Caminhava sem saber para onde, como quem se deixa levar ao sabor do vento. Uma sensação de tristeza fazia doer o peito, e ela desejou ter o poder de retroceder o tempo, voltar aos últimos dias na companhia de Sol. Queria ter uma conversa franca com ele sobre a viagem para a Itália. Qual era o seu desejo, afinal, que ela partisse atrás daquele sonho ou permanecesse com ele, fazendo-lhe companhia até o fim dos seus dias?  Nisso a voz da consciência a colocou à prova. “Você acha que o velho te pediria para ficar, sendo ele desapegado de si mesmo?” Ato contínuo, a voz a questionou: “Supondo que assim entendesse, você desistiria da viagem para cuidar dele?”. Antes que respondesse a si mesma, outra voz, desta vez vinda do exterior, trouxe-a de volta à realidade.

– Amélia, é tu mesmo, minha filha? Então tu voltou a este torrão?

Olhou do lado e deu com Tião Xoxota, que saía de dentro do mato com um feixe de arariba seca. Naquela época do ano, os moradores costumavam recolher pedaços de pau e galhos de árvores ressequidos pelo calor inclemente do verão, para serem usados como lenha no período invernoso. Alguns já dispunham de fogão a gás e dispensavam aquele ritual, porém, a maioria, sem maiores recursos, ainda se via refém do velho e bom fogão de pedras.

Amélia lançou um olhar de ternura para Tião e o abraçou. Assim como a maioria dos moradores, nutria por ele um misto de carinho e admiração, em face da sua convivência com a heroína do lugar, e por ter participado ativamente com ela do evento que resultara na salvação do rio Maracu.

– Tião! Quanto tempo… voltei sim. Precisava rever este lugar, já que não me foi possível me despedir de Sol.

Tião a fitou com gravidade.

– A menina parece se sentir culpada pelo que aconteceu com o nosso velho, ou estou errado?

Amélia ficou em silêncio, mas não conseguiu sustentar o olhar de Tião, o que deixou à mostra o seu desconforto.

Tião indicou para ela o tronco de um velho pé de jequitibá rosa, exemplar de rara beleza, pelo seu porte majestoso e altura incomparável, tombado à beira do caminho pelo peso dos anos.  Ali, os dois sentados, lado a lado, ele tomou a palavra.

– A menina não deve se sentir culpada do acontecido com Sol. Digo isto porque sei de coisas que você não sabe.

Amélia encarou Tião com surpresa.

– O que você sabe que eu não sei?

Tião falava riscando o chão com a lâmina de um velho patacho, que trazia sempre preso à cintura de um calção encardido.

– Você lembra daquela noite que Nôra mandou chamar o velho, dizendo que tinha uma coisa urgente para tratar com ele? Foi já quase véspera da tua viagem.

Amélia lembrava.

– Ele me disse que Nôra tinha um problema de saúde, coisa banal. Não foi?

– Não. O assunto foi outro. O velho não quis te causar aperreio.

– E qual foi o assunto?

Tião afastou-se um pouco mais no tronco da árvore e fez um aceno a Amélia, para se aproximar.

– Deite no meu colo, que vou te contar o que se sucedeu, e aí a menina vai acalmar o coração.

Tião então narrou, em detalhes, o encontro entre os três a poucos dias da viagem de Amélia para a Itália, naquela que fora a última tentativa de evitar aquela separação, que ele e Nôra viam como crucial para o quadro de saúde do velho.

O bar de Nôra estava praticamente vazio àquela hora da noite. Apenas uma das mesas era ocupada por Nôra e Tião, que, ao verem o velho se aproximar, levantaram e o abraçaram. Afora Amélia, por razões óbvias, Tião e Nôra eram as pessoas mais próximas de Sol, e nutriam por ele uma relação de amizade e respeito. Sol ocupou uma cadeira entre ambos e esperou que um deles explicassem a razão daquele encontro fora de hora. Nôra começou a falar:

– Sol, eu te chamei aqui para ti pedir perdão. Eu não devia ter falado aquele assunto da viagem de Amélia na frente de todo mundo. Foi uma coisa ruim, que saiu de repente e quando vi já tinha falado. Mas é porque você não merecia isso e eu não consigo ficar calada quando vejo injustiça.

Sol a fitou, o cenho fechado.

– A mim você não deve nada, Nôra.

Tião interveio.

– Sol, nós sabemos que você não julga ninguém, mas tá na cara que a Nôra agiu errado. Não se faz isso diante de estranhos. A própria Linda me ensinou essa lição. Sempre que ela queria me puxar as orelhas ou fazer uma revelação, me chamava em sua casa e me colocava a par da coisa, no reservado, dentro do quarto dela.

Sol suspirou demonstrando impaciência com aquele assunto.

– Bom, mas não foi para falar da atitude de Nôra que vocês armaram esta reunião. Qual é o problema?

Nôra se remexeu na cadeira e fitou Tião, como à espera de um sinal, que ele emitiu com um aceno de mão, deixando a palavra com ela.

– Sol, estamos preocupados contigo. Somos teus amigos e só queremos o teu bem.

– Eu sei.

– Essa viagem de Amélia só vai trazer prejuízos.

– Para quem?

– Pra ti e pra ela.

– É mesmo?

– Onde já se viu, uma menina ir morar numa terra distante, sem conhecer ninguém, sem saber nem falar a língua desse povo. É coisa de gente que perdeu o juízo, e você, que é o responsável por ela e tem a cabeça no lugar, precisa fazer alguma coisa pra impedir essa loucura. Se ela me ouvisse, eu mesma fazia isso, mas a  gente sabe que só existe uma pessoa neste mundo que ela ouve.

Sol intercedeu.

– A viagem de Amélia é assunto dela. E quanto a isso, não vejo mal nenhum, só benefícios. É a oportunidade para ela testar a sua autonomia. O que tem de errado nisso?

Foi a vez de Tião falar.

– Tem que ela vai para o estrangeiro, um lugar de gente que fala uma língua enrolada, que ela não conhece. Apesar de ter crescido, Amélia é ainda muito verde. Não sabe se virar sozinha.

Sol minimizou.

– Amélia é esperta, Tião. Se duvidar, ela se vira melhor do que nós três juntos.

Nôra ajustou o foco.

– Mas e você, meu amigo? Quem vai te socorrer à noite nas tuas crises de tosse?

– Eu mesmo. Sempre me virei sozinho, e não vai ser agora que hei de ocupar os outros.

Tião perdeu a paciência.

– Deixa de orgulho, homem de Deus. Você é um velho doente, precisa de cuidado. Nôra até poderia fazer as vezes de Amélia, se aceitasse que ela dormisse lá na palhoça contigo, mas tu é teimoso, não aceita ajuda de ninguém.

Sol permanecia firme.

– Não carece tirar a Nôra dos seus afazeres. Todos estes anos eu dei conta de mim. Deus sempre esteve comigo, e isso me basta.

Nôra fez uma última tentativa.

– Sol, Amélia só faz essa viagem se você deixar.

– Eu não sou dono da vida de Amélia, não me cabe proibir nem permitir.

– Basta um apelo teu. Duvido que ela tenha coragem …

Sol se levantou da cadeira, ajustou as muletas sobre os sovacos, e encarou os amigos, que o fitavam inconsoláveis.

– Eu agradeço a preocupação de vocês, mas eu não eduquei Amélia para servir a mim. Eduquei para que aprendesse a caminhar sozinha. Daqui a pouco eu não estarei mais aqui, mas ela sim, e terá que cuidar de si.

E diante do olhar de espanto dos dois, emendou.

– Se vocês querem saber mais, eu vejo essa viagem como o teste final da preparação de Amélia para a vida. Se ela desistisse desse objetivo, eu me sentiria um fracassado, que não soube ensinar alguém a voar com as próprias asas.

Alisando os cabelos de Amélia, Tião suspirou, como se ainda vivesse aquele último encontro a três.

– O velho era tinhoso. Deu as costas pra nós e caminhou, naquele seu arrastado manco, para a canoinha dele. Colocou as muletas de lado e começou a remar para o meio do rio, e foi remando até sumir na curva da coivara. Foi a última vez que vi Sol com vida.

Tião ficou em silêncio, esperando que Amélia dissesse alguma coisa.

– Com isso você quer me dizer que Sol desejava que eu fosse embora do Ibacazinho? Mesmo que isso significasse a morte para ele?

– Eu quero te dizer que a vida toda Sol te preparou para aquele momento. Ele queria que você se tornasse uma mulher de verdade, dona do teu próprio nariz, sem depender de ninguém. Sol sabia que estava com os dias contados, e enxergou nessa viagem o bater de asas desse passarinho que ele cuidou com tanto carinho.

Os olhos de Amélia brilharam então de um modo diferente, como se uma luz redentora tocasse o fundo do seu coração, e ela se viu, de repente, liberta de um pesadelo. Quantas noites mal dormidas, sentindo-se uma criminosa que deixara alguém tão querido à própria sorte, para satisfazer a si mesma. Por conta desse sentimento, fizera sua mala às escondidas e a jogara para debaixo da cama, como alguém em fuga, quando, na verdade, queria apenas poupar-lhe mais sofrimento.

Passara anos com aquele punhal cravado no peito, aquela dor indômita que parecia espicaçar a alma, para então descobrir que sofrera à toa. Longe de querer mantê-la próxima de si, Sol desejava que ela abrisse a gaiola e batesse as asas, afinal, foi para isso que ele a preparara durante aqueles anos de convivência.  Desistir da viagem, sim, seria o maior golpe contra os planos dele. Agora tudo se mostrava tão claro! Sol, com a sua capacidade de desprendimento, jamais manteria alguém acorrentado a si, por conta de um sentimento pessoal. Tudo o que pregara a vida toda é que as pessoas tivessem autonomia de pensar e agir, que fossem como passarinhos, de si mesmo devotos. Onde quer que estivesse, ele estaria orgulhoso, de ver a bela andorinha em que se tornara.

Tião estava certo. Era tudo uma questão de ver as coisas por um ângulo diferente. Sol não lhe dizia que antes de tomar uma decisão era preciso consultar o coração, e que aquilo que vem da alma é o que mais agrada a Deus?

Vendo que ela mergulhara em profunda reflexão, Tião tocou-lhe o rosto com as mãos, e concluiu.

– O nosso velho morreu feliz, porque viu terminada a sua última missão nesta terra, que foi entregar você pronta para a vida.

Amélia continuava pensativa, e Tião aguardou em silêncio.

– Tem algo que permanece obscuro na minha mente.

– O que, minha filha?

– Por que Sol não quis se despedir de mim? Naquele domingo, saiu de casa ainda de madrugada, sem trocar uma palavra comigo, sem um abraço, um sinal sequer. Isso me deixou em pedaços e fez aumentar em mim o peso de culpa.

Tião sorriu com ar superior.

– É que você poderia desistir da viagem.

– Sem me despedir dele, eu também poderia ter desistido.

– Ele achou que não.

  • Jornalista e Escritor – Penúltimo capítulo de “A menina e o Sol poente”, e o último a ser antecipado para os leitores, antes de publicado o livro. Lançamento deve ocorrer até o final do ano.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Editor

Graduado em Jornalismo, Luiz Antonio Morais é pós-graduado em Design Gráfico e Publicitário. Mantém o blog desde 2008, um dos mais antigos do Estado.

Mande sua sugestão de conteúdo.
E-mail: luizantoniomorais2019@gmail.com

YouTube Sotaque

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade