
Por Ed Wilson Araújo
O LUXO
Uma rápida folheada no cardápio de um dos restaurantes de médio padrão na orla de Atins, o point do turismo sofisticado de Barreirinhas, revela preços estratosféricos de bebidas e alimentos. Uma cerveja de 350ml (long neck) é 20,00; uma porção de pastel sai por 70,00; e um prato para quatro pessoas chega a 675,00. Para sentar e consumir, ao som de música ao vivo, o couvert custa 30,00. Nesse pedaço de paraíso tropical localizado nos Lençóis Maranhenses, algumas diárias de hotéis chegam a R$ 5.000,00.
Esse lugar onde circula muito dinheiro também produz demasiado lixo nas pousadas, resorts, bares e restaurantes. Tudo é transportado em tratores e caminhonetes para a sede do município de Barreirinhas, a 256 Km de São Luís. Em julho de 2024, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses recebeu o título de Patrimônio Natural da Humanidade, concedido pela Unesco.
O INFERNO
Diariamente, às 5h30min da manhã, um velho caminhão pau de arara leva um grupo de catadores para o lixão da cidade, uma área de aproximadamente três hectares, degradada, às margens da rodovia MA-225, próximo ao povoado Sobradinho. Eles trabalham entre urubus, calor extenuante, fumaça tóxica asfixiante, contaminantes químicos, odores diversos, carniças disputadas por cachorros esqueléticos, ratos, baratas e moscas aos montes, correndo ainda o risco de serem atingidos por incêndio.
Sem licença ambiental, a Prefeitura de Barreirinhas despeja diariamente 80 toneladas de resíduos na margem da MA-225, segundo a Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
Transporte precário conduz catadores ao trabalho. Imagem: Ed Wilson Araújo
Sentada no monturo de sacos pretos e outros de variadas colorações, uma mulher forte faz várias operações simultâneas: maneja uma pequena faca e corta as embalagens, espanta a nuvem de moscas no seu rosto e revira tudo à cata das coisas de valor. A alma do capitalismo espalha-se sobre a montanha de resíduos, onde os objetos recicláveis viram mercadoria com preços diferenciados: garrafas pet, plástico filme, latas de bebidas, cobre, papelão, embalagens de papel, alumínio e ferro.
Os primeiros registros sobre o lixão datam de 2004, segundo a pesquisa de Fernanda Maria da Costa Lindoso, graduada em Ciências Biológicas pelo Instituto Federal do Maranhão (IFMA) em Barreirinhas. O depósito de resíduos a céu aberto ficava nas proximidades do Hospital Regional e dos bairros Vila Canaã, Cidade Nova e Residencial Mundico Cosme e era conhecido como “Lixão da Cidade Nova”, objeto de conflitos com moradores devido à fumaça tóxica, moscas, odores e contaminação do solo e da água.
À época, um relatório técnico emitido por pesquisadores do IFMA, após avaliar a qualidade da água dos poços da Vila Canaã, registrou um dado alarmante: “85% das amostras coletadas na estação seca e na estação chuvosa apresentaram contaminação por coliformes totais e todas as amostras que apresentaram contaminação por coliformes também apresentaram contaminação por coliformes fecais”, constatando o perigo de consumo para a saúde humana, atestaram a doutora em Biologia Vegetal Éville Karina Maciel Delgado Ribeiro Novaes e o químico industrial Carlos Augusto Gomes Soares.
VIDA “SOFRIDEIRA”
Em 2022, houve a transferência dos resíduos para o terreno marginal à rodovia MA-225, a cerca de 25Km do Centro de Barreirinhas. No novo depósito não há moradias nem equipamentos públicos nas proximidades, mas a área degradada é flagrante crime ambiental, previsto na Lei 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, determinando a extinção dos lixões até 2014.
Cerca de 30 famílias trabalham no local. O rosto coberto de fuligem, entre as rugas profundas, guarda as marcas do tempo de serviço de Sebastião Nunes Pereira, o Tião da Reciclagem. Ele explicou que atua no ramo há cerca de 20 anos, desde o lixão de Tutoia, cidade localizada a 70 Km de Barreirinhas. Hoje, além de catador, é sucateiro. Há quatro anos comprou uma caminhonete e passou a empreender – adquire no lixão e vende para os “patrões”, como são denominados os compradores de maior porte. “A nossa vida é sofrideira. Se não trabalhar, não vai”, definiu. A sua esposa, Maria dos Reis, tem 28 anos na reciclagem. “Sou fundadora do lixão de Tutóia, mas aqui em Barreirinhas o lixo dá melhor, tem mais renda”, enfatizou.

A jovem Letícia Silva, de 24 anos, afirma estar no lixão desde criança, trabalhando com o seu pai no antigo depósito de resíduos da Cidade Nova. “Aqui é bom, mas cansativo, por causa do sol e da fumaça”, enfatizou. Perguntada sobre o futuro, disse que deseja fazer curso de Fisioterapia para cuidar das pessoas.
Antônio Pereira da Silva tem 40 anos de idade e considera-se um dos fundadores do “novo” lixão, em 2022, à margem da MA-225. A sua esposa, Bernadete Feitosa, de 49 anos, foi junto. O casal tem uma renda média de R$ 4.000,00 com a reciclagem.
Nenhum dos catadores usa EPI (Equipamento de Proteção Individual). Todos manejam pequenas facas para cortar os sacos que chegam despejados pelas caçambas e caminhões de coleta. A triagem é rústica. Consiste em ir para dentro do monturo, revirar os sacos e separar os recicláveis. “A gente aqui faz a limpeza”, explica Feitosa.
O Maranhão tem 217 municípios e apenas um aterro sanitário – o Titara. Localizado em Rosário, a 75 Km de São Luís, foi implantado em 2015 e recebe os resíduos coletados de apenas 17 cidades, segundo a Agência Executiva Metropolitana (Agem). As demais, incluindo Barreirinhas, utilizam lixões a céu aberto, em desobediência à Política Federal de Saneamento Básico, instituída pela Lei nº 11.445/2007, complementada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), atualizada pelo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020).
Em seu conjunto, as legislações recomendam uma série de medidas para o tratamento dos resíduos sólidos em ambientes adequados (evitando danos ambientais), a valorização da profissão de catador de materiais recicláveis e a extinção dos lixões.
Apesar de sofrer discriminação pelo tipo do trabalho, Bernadete Feitosa conta que tem uma vida digna. Com ela e o marido – detalha – outros familiares também vivem da reciclagem: mãe, irmã, sobrinha e cunhados. “Eu comprei um terreno, fiz o muro, construí a minha casa e tenho moto. Tudo do lixão. Se eu tivesse outro serviço não tinha certeza de conquistar essas coisas”, comparou.
REVÓLVER, DINHEIRO E FETO
Quando o sol e a fumaça pesam sobre os corpos exaustos, os catadores buscam abrigo em um barraco improvisado, rodeado de sacos gigantes abarrotados de garrafas pet. É o momento da resenha, do café e da contação das histórias sobre a vida no lixão e os achados inusitados.
A narradora Bernadete Feitosa comanda o fio da conversa, entrecortada pelos outros participantes, revelando fatos diversos. Relatam que certa vez um conhecido político de Barreirinhas chegou desesperado para encontrar um revólver de cabo dourado que estava enrolado em um plástico e foi colocado no lixo da casa dele por engano, pela faxineira. Contam ainda sobre 5 mil reais encontrados em uma caixa de peixe seco. Os donos do dinheiro estariam bebendo em um bar e deixaram a caixa de papelão na calçada, distraídos, quando o caminhão da limpeza passou e recolheu.

Outros ditos dão conta dos achados de R$ 200,00 em uma carteira porta-cédulas e 475,00 em um envelope utilizado para fazer depósito bancário. “O Deus nos acuda mesmo aconteceu no dia que encontraram um feto no lixão. Era polícia para todo lado, um desespero. O corpo ainda estava molinho. Uma tristeza essa tragédia”, confessa Feitosa.
Os catadores, por outro lado, celebram a coleta de objetos de uso pessoal descartados ainda em boas condições de uso, como bolsas, calças, bermudas, sapatos, tênis, sandálias e até aparelhos celulares. “Tudo que eu visto tiro daqui. As minhas roupas de cama também, porque nós recebe doação de enxovais usados das pousadas e hotéis”, mencionou Maria José da Silva, registrando ainda as cestas básicas fornecidas pelos eventos de trilha e rally nos Lençóis Maranhenses.
MUNICÍPIO DESCUMPRIU DECISÃO JUDICIAL
A transferência do depósito de resíduos da área urbana para a margem da MA-225 ocorreu em meio aos protestos de moradores, de iniciativas do Ministério Público (MP) e condenação do município em decisão judicial. Os trâmites remetem ao ano de 2014, quando o Promotor de Proteção ao Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural de Barreirinhas instaurou Inquérito Civil para apurar o cumprimento do artigo 54 da Lei nº 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos), que proíbe a destinação ou disposição final de resíduos sólidos ou rejeitos in natura a céu aberto, estabelecendo o prazo de quatro anos (2014) para a extinção dos lixões.
Já em 2018, a Promotoria de Justiça de Barreirinhas instaurou o Inquérito Civil nº 001347-018/2018 com o objetivo de apurar as providências.
Respondendo ao MP, o Município de Barreirinhas informou que realizou o Processo Licitatório nº 008-3766/2013 e contratou a empresa Gestão Ambiental de Projetos e Consultoria Ltda para conduzir a implantação do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), efetivado na Lei nº 765, de 07/12/2017. Sobre o despejo dos resíduos a céu aberto, informou que estava realizando a contenção do lixão existente no povoado Santa Cruz e que seria transferido para o Aterro Sanitário, a ser localizado após a comunidade Passagem do Castro.
Apesar das justificativas apresentadas ao MP, a Prefeitura de Barreirinhas não cumpriu a Lei nº 12.305/2010, que mandava extinguir os lixões até 2014.
Em 2019 o Ministério Público ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o município, requerendo a imediata interrupção do despejo irregular de resíduos sólidos a céu aberto e a construção de Aterro Sanitário, com prazo de implantação em até quatro anos (2023). O município não acatou o Parket, que ajuizou junto ao Tribunal de Justiça para obrigar a gestão municipal a fazer a destinação adequada dos resíduos.
A Justiça julgou procedente o pedido do Ministério Público, condenando o Município de Barreirinhas a:
– Adequar a destinação dos resíduos sólidos conforme os padrões técnicos e sanitários da Lei nº 12.305/2010, no prazo de até 24 meses;
– Encaminhar ao Ministério Público, após 120 dias da intimação, o projeto e cronograma para a execução da medida;
– Prestar contas mensalmente ao Ministério Público sobre o cumprimento do cronograma;
– Prever os recursos financeiros necessários no orçamento municipal a partir de 2022.
O município descumpriu a decisão. Em sua defesa, a gestão alegou ausência de área licenciada para fazer o descarte e solicitou prazo de 120 dias aprovar um projeto de lei na Câmara dos Vereadores, bem como realizar uma licitação para construir uma usina de tratamento dos resíduos, mas nenhuma das medidas foi cumprida.
Ao fim, o Lixão da Cidade Nova foi desativado e o destino final dos resíduos sólidos passou a ser o novo depósito a céu aberto à margem da MA-225.
No entanto, o aterro sanitário está previsto no Plano Municipal de Saneamento Básico (Lei nº 765, de 07/12/2017), constando, na Seção III, a “Adoção do aterro sanitário enquanto solução tecnológica de destinação final dos rejeitos, com sua vida útil de até 20 anos”.
PROBLEMAS E SOLUÇÕES
O documento “Diagnóstico situacional: Inclusão Socioprodutiva de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Estado do Maranhão”, produzido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Maranhão, no âmbito do Programa Pró-Catadores (PPC), apresenta uma série de indicadores sobre a cadeia produtiva dos resíduos sólidos em 16 cidades do Maranhão, incluindo Barreirinhas.
Segundo o levantamento, a situação dos trabalhadores nos lixões configura violação de direitos em ambientes insalubres, sem uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), submetidos a riscos de acidentes com materiais perfurocortantes, ameaças de contrair doenças de pele ou intoxicação por substâncias químicas e fumaça tóxica, constante exposição a resíduos contaminantes e altas temperaturas geradas pela queima dos rejeitos.
O documento aponta ainda a falta de reconhecimento institucional. “Apesar da sua importância, os catadores ainda são pouco valorizados pelas políticas públicas e pela sociedade, o que limita o acesso aos programas de apoio e financiamento”, explica o diagnóstico.
Entre as 16 cidades mapeadas pelo Sebrae, Barreirinhas figura com médias baixas em quase todos os itens. Embora tenha elaborado o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (ver página 7 no link), o município não implantou o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) para os catadores, item obrigatório da legislação. Outro dispositivo ausente é o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), destinado a evitar danos corporais e acidentes com os catadores nos ambientes insalubres e precários.
CATADORES ORGANIZADOS
Egresso do lixão, outro grupo trabalha de forma organizada na Associação dos Catadores e Catadoras de Barreirinhas (ACCB), o Shopping da Reciclagem, localizado em um galpão na área urbana da cidade, equipado com máquina de prensa e balança fornecidos pelo Governo do Estado e utilizados para compactar e pesar os recicláveis.

O Shopping da Reciclagem recolhe os materiais (garrafas plásticas, papelão e latas de bebidas) com uma triagem prévia dos parceiros do comércio e da hotelaria. “No galpão somos cinco catadores. Toda a renda da associação é dividida e vendemos para os compradores que dão o maior preço. O mercado de resíduo sólido é muito procurado”, esclareceu a vice-presidenta da associação, Josélia Reis.
A Prefeitura de Barreirinhas paga o aluguel e a manutenção do galpão. Fornece também o caminhão para o transporte dos resídios.
Criada em 2018, a entidade tem 32 filiados e registro no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas). Recentemente, criou o “selo verde” com a identificação “esse estabelecimento tem compromisso com a sustentabilidade”, distinção utilizada para valorizar e estimular as parcerias que fornecem os resíduos.
O secretário municipal de Meio Ambiente de Barreirinhas, Ronald Augusto Sousa Rocha, o Ronin, explica que o Shopping da Reciclagem serve como referência para retirar os catadores do lixão. “O objetivo da prefeitura é concentrar todos os catadores no galpão, transformar o lixão em área de transbordo e transferir os resíduos para o aterro sanitário de Titara”, detalhou.
Até agosto de 2025 o município recebeu cerca de 250 mil turistas, mas a gestão ainda não implantou a coleta seletiva, informou o secretário.
MAIS TURISMO, MENOS SANEAMENTO
Para o doutorando em Geografia Humana pela USP e membro do Lepeng (Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino de Geografia), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Giovanny Castro, “o crescimento populacional e o avanço do turismo transformaram Barreirinhas, porta de entrada do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, em um retrato das contradições brasileiras”. Com base no IBGE, ele detalha que entre 1993 e 2022 a população do município aumentou 251%, saltando de 18,6 mil para 65,5 mil habitantes.
O pesquisador interpreta a situação como um exemplo de expansão do turismo sem planejamento e políticas públicas eficazes, acentuando desigualdades com a degradação de áreas ecologicamente sensíveis, em desobediência à Política Nacional dos Resíduos Sólidos.

“Barreirinhas ainda não conta com rede de esgoto e destina seus resíduos a céu aberto. Novos empreendimentos como pousadas, resorts e hotéis sobrecarregaram uma estrutura já frágil”, enfatizou.
O conflito entre a localização de lixões e a resistência das populações adjacentes revela o fenômeno conhecido como “nimby”, iniciais de not in my backyard (“não no meu quintal”), utilizada para repudiar instalações predatórias e insalubres em vizinhanças de moradias urbanas ou do campo.
O acúmulo de resíduos a céu aberto também contamina o solo e as águas subterrâneas pela produção de “chorume” – o líquido oriundo da decomposição da matéria orgânica, de grande potencial poluidor.
ALTERNATIVAS AOS LIXÕES
Uma das formas de amenizar o destino final dos resíduos está em curso por meio da Secretaria de Estado do Trabalho e Economia Solidária (Setres), que pretende implantar 11 Centros de Triagem e Reciclagem (CTR) no Maranhão. “O equipamento terá um galpão de 1050 metros quadrados, veículos elétricos para fazer a coleta, esteira seletiva, triturador, prensas hidráulicas para papel, plástico e alumínio e balanças digitais de precisão. O investimento total é de R$ 25 milhões, com recursos oriundos do governo federal, através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)”, explica o titular da Setres Luiz Henrique Lula.
Os CTRs têm parceria do Sebrae, através do Programa Pró-Catadores, responsável pela capacitação em planejamento e gestão de negócios, marketing e logística, com o propósito de ensinar os beneficiários a precificar os produtos e administrar os empreendimentos.
Barreirinhas é uma das cidades programadas para receber um dos 11 CTRs. “Eu já encaminhei a documentação de um terreno específico, no local onde funcionava o antigo lixão, na Cidade Nova”, enumerou Ronald Rocha (Ronin). Ele acrescentou que outras medidas como a implantação de um ecoponto no povoado Santo Inácio (próximo de Atins) e de miniecopontos nas escolas municipais estão nos planos da prefeitura.
Segundo a Setres e a Sema de Barreirinhas, o objetivo comum é tirar os catadores dos lixões, qualificá-los para operar no circuito empreendedor dos recicláveis e fechar os depósitos de resíduos a céu aberto.
				
Graduado em Jornalismo, Luiz Antonio Morais é pós-graduado em Design Gráfico e Publicitário. Mantém o blog desde 2008, um dos mais antigos do Estado.




