*Nonato Reis*
O mês era abril e chovia pesadamente. O céu, coberto de cinza, parecia se esvair num autêntico aguaceiro, a se esparramar na cobertura de telhas de brasilit do prédio há pouco inaugurado, que reagia ao choque fazendo um ruído medonho.
Porém, alheio à fúria do temporal, na sala da sétima série do Ginásio Bandeirantes, eu rezava para que a sineta tocasse logo, anunciando o fim do turno matutino, ainda que a aula fosse de Química, que eu acompanhava com todos os sentidos ligados, não por que gostasse da matéria – pelo contrário, tinha mesmo ojeriza a fórmulas e tabela periódica.
O meu interesse se devia à professora Graça Cutrim, que chamávamos carinhosamente de Gracinha. Ela conquistara a minha admiração por um conjunto de fatores – a começar bela beleza exuberante dos seus vinte e poucos anos e o jeito descolado de se vestir, usando apenas sandálias, calça jeans surrado e camiseta, que contrastava com a indumentária sóbria da época, recomendada para o magistério.
Não bastasse esse diferencial, Gracinha era só alguns anos mais velha que os alunos, o que destoava também com a sua personalidade forte, que lembrava alguém com muito mais idade. E, o que era mais importante – tinha didática, sabia se impor e fazer do limão que simbolizava o estudo de química uma bela e palatável limonada.
Mas aquele dia era atípico, e o meu pensamento se encontrava fora dali. Não via a hora de chegar em casa e ir direto à cozinha, onde me aguardava um caldeirão de bagrinho cozido. Na madrugada, junto com o seu Rena, pescara dúzias desse peixe, cujo sabor entre abril e maio é incomparável.
Fiz o meu pai prometer que mandaria a dona Eulina cozinhar um caldeirão só para mim – os demais que se servissem de outra panela. “Pode deixar. Vai para a tua escola, que na volta os bagrinhos estão a tua espera”.
Cheguei em casa e mal cumprimentei dona Eulina. Ainda com a roupa do colégio peguei o caldeirão fumegante que jazia sobre o fogão de pedras e o depositei em cima da mesa.
Com uma colher de pau despejei parte do caldo em um prato fundo, próximo a um saco com farinha de puba. Depois fui misturando aquele caldo viscoso com a farinha até formar uma massa compacta, parecida com a de cimento e areia, usada em construção civil.
Em pouco tempo dei cabo do caldeirão repleto de bagrinho e viola, diante do olhar incrédulo, e ao mesmo tempo reprovador, de minha mãe, que não tolerava arroubos de gulodice. Preocupada, ela ainda me recomendou cautela. Disse: “não vá dormir logo, espera o teu estômago se acostumar com esse exagero”.
Mas aquele não era mesmo um dia normal. Vendo que a chuva dera uma trégua, me armei de cofo, tarrafa e remo e, a bordo da velha canoa de tarumã do seu Rena, naveguei até o leito do Maracu, nas proximidades da ponte de concreto armado que liga a MA 014 de uma margem à outra. Pouco tempo depois, e já tendo capturado algumas espécies de mandi, piranha e traíra, a tarrafa engatara numa coivara submersa. Incontinente, mergulhei até o fundo do rio para liberar o apetrecho. Foi quando senti um estalo próximo ao ouvido esquerdo, como se alguma coisa tivesse se rompido.
Voltei à superfície, e já não era o mesmo. Uma dor que principiou na teste e se espalhou por toda a cabaça me fez abandonar a pescaria e rumar para casa. Compreendi que não era uma dor qualquer, dessas que acometem após um porre ou em razão de uma carga maior de estresse. Era algo avassalador, como se a cabeça fosse explodir.
Abandonei a canoa na beira do rio com peixes e apetrechos e corri para dentro de casa. Só lembro de ver a minha mãe com os olhos arregalados, de quem entende a gravidade. Deitei na cama dela e apaguei, achando que não retornaria mais a este mundo. Duas horas depois despertei, a cabeça pesando chumbo e o estômago a sair pela boca. Corri até a janela mais próxima e liberei aquele inferno que me destruía.
Três dias de febre e náuseas em sequência me resgataram do exílio da morte, mas não evitaram uma herança maldita, que me persegue até os dias atuais. Quando menos espero, ela reaparece, na forma de estrelinhas ao redor do campo visual, dificuldade para enxergar e dor em um dos lóbulos frontais.
As crises já foram muito mais regulares e intensas – algumas vezes tive que baixar hospital. Hoje perderam força e frequência, reduzidas a pontinhos brilhantes, porém sem dor.
Uma coisa é certa: ninguém queira fazer parte do contingente que sofre de enxaqueca. Nas crises é como visitar o inferno e achar que não volta mais ao reino dos vivos. Pena não poder retroagir o tempo. Como se dizia lá no Ibacazinho: isso que dá ter o olho maior que as tripas.
* Jornalista | Escritor