Por Nonato Reis*
Os galos já não são como antes. Perderam fama, função e entusiasmo. Perderam, sobretudo, a capacidade de encantar com seu canto lírico que, reunido em coro, mais parecia uma orquestra naquela variedade de sons em harmonia.
Hospedei-me por dois dias em Camocim no carnaval e fiquei frustrado ao acordar e não ouvir a profusão de cantos que embalava as madrugadas das cidades e vilarejos do interior pelo país afora. O galo, simplesmente, desapareceu do cenário das alvoradas.
Muito diferente de outras épocas, em que reinava como o personagem noturno de maior destaque.
Além da função natural de reprodutor dos galinheiros, cabia-lhe marcar as horas a partir da meia-noite até às 6 da manhã, atuando como um autêntico despertador dos que precisavam acordar cedo para cuidar dos afazeres, como pastorear os rebanhos, navegar os rios e lagos seguindo a trilha dos peixes e até enfrentar o desafio dos livros – caso dos moradores em idade escolar.
De tão importantes e famosos, os galos se tornaram personagens de adivinhações. Lembro-me de uma que era mais ou menos assim: “À meia-noite acorda o inglês/sabe das horas, não sabe do mês/tem espora, não é cavaleiro/cava no chão e não acha dinheiro”.
No Ibacazinho, terra de lendas e mistérios, eles carregavam ainda a pecha do sobrenatural. Muitas histórias de aparição de espíritos ocorriam após o primeiro cantar do galo.
Tinha a de um primo que, ao voltar para a casa, de madrugada, dava de cara com um galo preto no meio do caminho, botando faísca pelos olhos e a repetir a frase: “Seu Lega é homem”.
Também havia um pesqueiro de bagrinho encantado que, após o cantar do galo, ninguém mais podia ali permanecer, porque dois gatinhos, que na sequência se transfiguravam em touros selvagens, emergiam do meio das águas e se atracavam numa luta renhida, se mordendo e se rasgando, dando urros medonhos.
Medo à parte, eu amava o canto do galo, que entendia como uma verdadeira celebração pelo anúncio de um novo dia.
Galo bom era o galo-guia, que atuava como o maestro da orquestra. Cabia-lhe anunciar a passagem do tempo, como a batida do relógio assinalando a hora. Ele sacudia as asas contra o peito e soltava o canto: “ô gô gô ôôôô”, no que era seguido por um desfile de cantos que se tornavam mais ou menos perceptíveis, conforme a distância de cada poleiro.
Agora vive-se essa melancolia dos tempos idos. A evolução das coisas trouxe a reboque os ovos e pintos de proveta, que praticamente dizimaram a espécie, apagando o brilho das madrugadas.
Disse no início deste texto que não ouvi o cantar de um único galo em Camocim. Pois bem. Na terça-feira de carnaval, pela manhã, eu me preparava para deixar a cidade, e fui alertado por Josy que detectara o sinal de um galo. Apurei os ouvidos e percebi o canto da ave. Longe, ausente, isolado, quase inaudível. Para lembrar que não se fazem mais galos como antigamente.
…
Integra o livro de contos e crônicas “A menina e o sol poente”, em processo de edição.
*Jornalista e escritor