O carro de boi e a cama de pau duro

Nonato Reis*

Aquele som intermitente, arrastado, variando entre o grave e o agudo, como se fosse um lamento, eu jamais esqueci. Eram os anos marcados pelo querosene e a luz da lamparina, do quase completo isolamento.

O velho carro de boi reinava então absoluto pelo interior do país, transportando mercadorias e gente.

No Ibacazinho, além de meio de transporte, a engrenagem servia também para quebrar a rotina de uma vida monótona, com o seu rangido característico, que lembrava o berro de um animal ou qualquer forma de comunicação inaudível.

Eu amava aquele atrito do eixo da roda em contato com a parte inferior do chumaço, que fazia o carro “cantar”, impulsionado pela força dos bois. Eles assomavam de todos os lugares, mas da Quinta de Stanislau, favorecido talvez pela proximidade com a casa do meu pai, vinha o som mais harmonioso – se é que se pode associar aquilo com música.

O certo é que o carro de boi foi um veículo primordial no cotidiano daqueles povoados, fazendo a interligação das roças com os engenhos e destes com os mercados consumidores. Mesmo tão popular, constituía um símbolo de poder, porque só os bem aquinhoados podiam dispor de um carro movido a animais ou mesmo de uma frota deles.

Sua origem se perde no tempo. Era conhecido dos chineses e hindus. Também os egípcios, babilônios, hebreus e fenícios utilizavam o transporte “via bois”. Depois, os europeus, quando se lançaram à colonização da África e da América, fizeram do boi um item indispensável da carga das caravelas. Foi assim trazido ao Brasil pelos portugueses e chegou ao solo pátrio praticamente junto com o Descobrimento.

Em Portugal se chama boeiro; cambona, em algumas regiões do Brasil; nos pampas gaúchos, carreta; e no Ibacazinho, simplesmente, carro de boi.

Foi uma ferramenta importante nas guerras do Paraguai e dos Farrapos, servindo para transportar equipamentos pesados, e como ambulância, levando os soldados feridos até os acampamentos de saúde.

Nos povoados da zona rural maranhense, o carro de boi tinha múltiplas funções. Além do papel essencial de garantir a circulação de riquezas e pessoas, podia exercer também uma tarefa nobre, como, por exemplo, à moda de uma carruagem, levar a noiva ao altar, nas cerimônias religiosas.

Foi o que aconteceu com a filha do fazendeiro Antônio Bento, Maria Adelaide, que ele decidiu entregar em sociedade conjugal para o não menos fazendeiro, Orlando Gonçalves, filho do coronel José Gonçalves, dono de terras incontáveis no Cajari.

A distância entre a igrejinha da fazenda do coronel e a casa grande media não mais do que 500 metros, mas o pai do noivo fez questão que a sua nora fizesse o trajeto a bordo da composição movida a duas juntas de bois, devidamente preparada para a ocasião, que reunira convidados dos mais distantes lugares, incluindo autoridades de Viana e Penalva.

Sabedor da festança anunciada, Zé de Aniceto decidiu que se faria presente ao evento, e mais do que simplesmente participar dos comes e bebes, haveria de brindar a todos com uma peça da sua oratória.

Aniceto, um vaqueiro treinado na peleja dos campos desde menino, era mais conhecido pelos longos discursos que costumava proferir nos aniversários e velórios, e que, em razão do clima da ocasião, arrancavam lágrimas dos presentes.

O que estragava o vaqueiro era a inclinação pelo álcool, que o fazia perder a pose e a pompa. Ele chegou à igrejinha quando o padre já dava por encerrada a cerimônia. O último ato fora a bênção das alianças, que a noiva preferiu fazer dentro do carro de boi, sobre uma mesa ornada com uma toalha branca de seda, comprada em São Luís.

Cheio de cachaça até o talo, Aniceto foi abrindo caminho entre os convidados, berrando alto e o braço estendido, como quem pede um instante de atenção. Auxiliado por dois colegas de ofício, o vaqueiro alcançou o palco, mas só conseguiu proferir uma única frase. “Eu quando subo nesta cama de pau duro (…)”.

Foi interrompido pelas mãos grossas do coronel José Gonçalves, que caíram pesadas no seu pescoço, deixando-o sem fôlego. “Seu patife, respeite a minha casa e os meus convidados. Isto aqui não é o cabaré que tu e tua mãe frequentam”. E agarrando o vaqueiro pelo colarinho, arremessou-o para o alto, como quem joga fora um saco de lixo.

Zé caiu de costas no chão e perdeu o sentido. Acordou no dia seguinte, depois de tomar infusões e ter o corpo benzido pela melhor rezadeira da região. Quis saber onde estava, e depois de tomar ciência do ocorrido, não conseguiu conter um lamento. “Que pena! Era o meu melhor discurso”. A companheira dele o interrompeu. “Que discurso, homem, se tu fala uma loucura daquela no terreiro do coroné, diante do padre?” Zé olhou para ela com tristeza. “Mulher, o pau duro era o jacarandá da mesa. O melhor vinha depois”. A esposa não se conteve. “Tu devia tá era de safadeza mesmo, que até a mesa no carro tu chamou de cama”. Zé fez um ar de surpresa, e a mulher completou. “Dá é graças a Deus do coroné não ter cortado teus ovos”.

Integra o livro de contos “A menina e o sol poente”, em processo de edição.

*Jornalista e Escritor

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