O povo invadiu a delegacia e gritava; solta Tião!

Por Nonato Reis*

A delegacia virou um frejo, e ninguém dentro e ao redor teve mais sossego. Do lado de fora, uma turba enfurecida, e aos berros, tentava derrubar o portão acesso, então sob a proteção de dois soldados que, cansados de lutar, se limitavam a distribuir bordoadas de cassetete a torto e a direito.

Tudo por causa da prisão de Sebastião Xoxota, sob acusação de ter agredido a amante Mariazinha Boca de Cabra. O povo, porém, que conhecia bem a mulher e a capacidade dela de criar situações, não engoliu a história, e acreditava que Tião fora vítima de uma cilada.

Em sua sala acanhada, repleta de papéis e coisas fora do lugar, o delegado Zé Ambrósio resistia aos apelos de dois advogados (um baixo, gordo e careca; e outro, alto e bem vestido) para que libertasse o preso, razão de toda aquela celeuma. Os causídicos decidiram ajudar Tião, gratuitamente, depois de analisarem o caso com cuidado.

– Doutor (dizia o rábula careca, metido num terno que parecia feito para alguém de estatura maior), solte o Tião, isso é um engodo. Não há nenhuma prova das acusações contra ele.

No que era acolhido pelo colega de ofício mais bem aparentado.

– Nosso cliente foi vítima de uma trama, e o senhor embarcou nessa onda. Se ao menos tivesse dado ouvido a ele, nada disso teria acontecido. E agindo assim acabou ferindo o princípio do contraditório, consagrado na constituição.

Suando em bicas, o delegado, vermelho que nem pimentão, rechaçava.

– Menos verdade, doutor. Eu tentei ouvir o meliante, mas ele, insolente, fez foi me ofender com palavras de baixo calão. Quer dizer, me desacatou. Isso é crime. Tá na lei.

O advogado roliço retomou a palavra.

– Afinal, o senhor prendeu o Tião por agressão à companheira ou por desacato?

Houve uma pausa, o delegado engoliu em seco, não sabia o que dizer, e o advogado careca completou, com ar de professor.

– O senhor precisa esclarecer, até para que possamos definir a linha de defesa do réu. Se foi por agressão, a prisão é ilegal, porque meu cliente jura que não encostou um dedo na mulher, que é uma farsante e muito da esperta.

– Como é que o senhor sabe disso?

– Todo mundo sabe, e a prova é que o povo tomou o partido do Tião. Ela é que andou dando uns tabefes nele, por puro ciúme. Qual é o homem que aceita ser agredido dessa forma? Nem homem, nem mulher. Todos merecem respeito.

O outro advogado completou o argumento.

– Se foi por desacato, é um caso discutível, até porque até agora o senhor não disse que ofensa foi essa.

Nesse momento, uma pedra, vindo da rua, passou pela janela zunindo e se chocou contra a parede, atrás da mesa do delegado que, no susto, gritou “tiro!” e se jogou no chão.

O advogado bem vestido reassumiu a palavra, os olhos assustados.

– Foi uma pedra, doutor, mas se pega na cabeça do senhor, faria o mesmo estrago de uma bala.

O delegado, a custo, tentava se refazer do susto, e o rábula careca usou um tom incisivo.

– Doutor, ou o senhor faz alguma coisa para conter esse povo, ou vai acabar desmoralizado.

O delegado falou sem convicção.

– O senhor quer que eu faça o que, que solte o agressor?

– Eu quero que o senhor mande trazer o Tião à nossa presença, e vamos todos ouvir o que ele tem a dizer. Se ficar provado que bateu na mulher, nós aceitamos a prisão dele e vamos tentar acalmar esse povo, esclarecendo os fatos. Porém, se o Tião demonstrar o contrário, o senhor solta ele, imediatamente, e acaba com esse furdunço.

Vencido, o delegado ordenou a um agente que trouxesse o preso à sua sala, no que foi atendido prontamente.

Ao adentrar o gabinete, Tião Xoxata nem precisou de palavras para se defender. O próprio rosto e o pescoço azunhados falavam por si.

O rábula atarracado se dirigiu ao cliente.

– Tião, o que foi isso?

– É o que o senhor tá vendo.

– Mas quem fez isso?

– A desavergonhada da Mariazinha.

– Mas o senhor falou isso ao delegado?

– De que jeito, se ele já chegou me chamando de bandido?

Com ar de espanto, os advogados fitaram o delegado, e ele se viu na defensiva.

– Menos verdade, seu Tião. Eu perguntei por que o senhor agrediu sua mulher.

– Eu disse que não sou homem de bater em mulher, e que ela é uma bandida, que inventou essa história por causo de ciúme. E aí o senhor disse que bandido era eu.

Os olhos do delegado faiscaram, prestes a fuzilar o preso.

– Muito bem, seu Tião, agora seja homem e fale aqui para os seus advogados, o que foi que o senhor me respondeu.

– Respondi que o senhor é um patife, que prefere acreditar numa mentirosa.

Os advogados se entreolharam, e um deles, o bem-vestido, se dirigiu ao delegado.

– Foi por isso que o senhor prendeu o Tião?

– Como por isso? Ele me desacatou. Me chamou de patife.

– E desde quando isso configura crime de desacato?

– Como não, eu sou a autoridade desta delegacia, devo ser tratado com respeito.

– Deve, desde que o senhor trate, igualmente, as partes com respeito. Neste caso, o que o Tião fez foi reagir a uma ofensa; quer dizer, um desabafo, e quando isso acontece, não há caracterização de desacato. Pode consultar a lei.

O delegado respirou fundo e o alarido da rua pareceu impregnar todo o ambiente da delegacia, aos gritos de “Solta Tião! Solta Xoxota!”. Um agente que tentava conter a turba enfurecida adentrou a sala, esbaforido.

– Doutor, a coisa tá feia. Acabaram de quebrar o portão. Logo vão chegar nas celas.

O advogado bem vestido usou um tom categórico.

– Delegado, o senhor é um homem experimentado no ofício. Tá na cara do Tião que o senhor caiu numa cilada. Nosso cliente é inocente. Solta ele e devolve a paz a este lugar. Antes que uma coisa muito pior aconteça.

Sem saída, e com o povo prestes a invadir a delegacia, Ambrósio concordou em libertar Tião, sob certas condições lavradas em documento, entre elas a proibição de se aproximar da vítima a distância menor que 200 metros ou manter contato com ela por qualquer meio, sob pena de prisão.

Ao sair da delegacia, Tião foi recebido com aplausos pelo povo que, em celebração, o carregou nos braços até sua casa, à beira do rio Maracu.

À noite, exausto com os fatos do dia, Tião adormeceu rapidamente, mas foi desperto, horas depois, com Boca de Cabra deitada ao lado dele na cama.

Tião deu um pulo e esfregou os olhos, para se certificar de que aquilo não era uma assombração. A mulher, sorridente, o chamava com o dedo indicador.

– Tu endoideceu, sua louca! Não viu que o delegado me proibiu de chegar perto de ti?

E a mulher, toda faceira…

– Deixa de ser bobo, Tião. Quem ele proibiu de chegar perto foi tu, mas eu posso te procurar, e fazer contigo o que eu quiser.

Depois subiu nele e se acomodou sobre o pino, do seu modo de costume.

No dia seguinte, logo às primeiras horas, um camburão da polícia bateu à porta de Tião, e o conduziu algemado para a delegacia. Da janela da casa, Boca de Cabra acompanhava a cena, os olhos risonhos e a ponta do nariz ensanguentada.

*Jornalista e Escritor

Do livro As aventuras de Sebastião Xoxota, em processo de edição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

YouTube Sotaque

Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade