Por Nonato Reis*
Nos meus tempos de adolescente, as festas dedicadas aos santos milagreiros, as novenas, as rezas e as ladainhas faziam a alegria das comunidades ribeirinhas.
À semelhança de um católico fervoroso, eu comparecia a todas, não porque fosse devoto, mas atraído pela animação dos eventos e pelas guloseimas que costumavam ocorrer, após as celebrações e cantorias.
Festa de São Gonçalo, por exemplo, eram noites de diversão certa e comida farta.
Adorava a música, ao som de rabeca e violão, o bailado dos brincantes e aquela espécie de auto dedicado ao santo. No último dia, após a celebração, tinha o famoso “arrasta pé” de radiola, que varava as madrugadas nos barracões de chão batido de terra, cobertos com palha de babaçu. Amado Batista, Reginaldo Rossi e mais um cortejo de cantores bregas se revezavam nos discos de vinil, tocados nas aparelhagens de som de altíssima potência.
O baile de São Gonçalo era um tributo ao santo pelo atendimento de uma promessa. No interior, onde o povo tem uma religiosidade exacerbada, uma vez ocorrido o milagre em face do pedido, a festa tinha que ser realizada. Assim, se ocorresse de alguém fazer uma promessa e morrer sem cumprir o juramento, a obrigação estendia-se aos familiares do morto, que assumiam assim a responsabilidade pela promoção do evento. E ai de quem descumprisse o juramento. O morto não lhe daria sossego.
Eu ficava com a pulga atrás da orelha com essas promessas de defunto. As pessoas diziam que, no meio da representação, o falecido costumava “aparecer” no corpo de alguém, para dizer se considerava o encargo cumprido ou não.
Lembro de um baile desses que deu o maior furdunço, porque o finado decidiu “dar as caras” justo na hora do “arrasta pé”, quando o suor escorria livre e o cheiro de cachaça impregnava o salão apinhado de gente.
Foi “um para pra acertar” dos diabos. Enfurecida, a entidade do além “apoderou-se” da sua filha mais nova que, “possuída”, dava gritos e quebrava o que via pela frente. “Não valeu, não valeu!”, dizia aos berros. “Da minha promessa deviam participar apenas mulher, homem não”.
E lançando mão de um facão enferrujado, que alguém colocara ao pé da mesa do som, brandiu a arma no ar, diante do olhar estupefato da plateia. “Ou desmancha tudo e faz de novo, e agora, ou não fica um pra contar história”.
Foi gente fugindo aos magotes por buracos nas paredes laterais do barracão, igual ratos de porão de navio em naufgrágio. Eu, no sufoco para escapar, caí dentro de um galinheiro, repleto de excremento e saí de lá parecendo porco após deixar o lameiro.
Depois de algum tempo do rebuliço, a custo a paz voltara ao barracão, o espírito do morto, diante da jura dos filhos de que um novo baile seria realizado dali a alguns dias, tudo dentro dos conformes estabelecidos na promessa, aceitou bater em retirada e a festa pôde, enfim, ser retomada.
Menos para mim, que me encontrava em situação lastimável e exalando mau cheiro que se propagava a metros de distância.
Assim, já sob o coro dos poleiros que anunciava o raiar da aurora, bati em retirada e cheguei em casa, ávido por me ver livre daquelas vestes imundas. Porém, para minha surpresa encontrei o meu pai, em pé diante da porta, a me esperar com o cinturão na mão.
– Então é assim?
Eu não disse nada, e ele continuou:
– A tua avó nem bem foi enterrada e tu já varando as noites na safadeza…
Foi então que, sob o açoite do cinto nas costas, eu me lembrei que a velha Mariana, minha avó, falecera havia apenas quatro dias. Eu, moleque de 13 anos, não entendia ao certo o que significava a morte e muito menos o luto … Na minha cabeça, tudo era motivo de vadiagem…até mesmo velórios, quanto mais baile de São Gonçalo.
*Jornalista/Escritor