Registros inflados, atravessadores e pagamentos indevidos ampliam rombo no seguro-defeso; Cedral, São João Batista e outras cidades maranhenses estão no centro do esquema

As praias tranquilas do município de Cedral, no litoral norte do Maranhão, tornaram-se o epicentro de uma das maiores fraudes em programas sociais do país. Um esquema bilionário de falsos pescadores tem desviado recursos do seguro-defeso, benefício pago pelo governo federal a pescadores artesanais durante o período de proibição da pesca por razões ambientais.
A Controladoria-Geral da União (CGU), a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) conduzem investigações que apontam para uma rede nacional de intermediários que forjam vínculos com a atividade pesqueira para receber indevidamente o benefício. Só em Cedral, em 2024, foram destinados R$ 17 milhões ao seguro-defeso — valor superior ao total de repasses do programa Bolsa Família na cidade. O município conta com 4.975 pescadores registrados, muitos dos quais jamais pegaram em rede ou anzol, segundo relatos apurados.
Em São João Batista, os números também chamam atenção. Em 2020, o município registrava 4.193 concessões do seguro. Em 2024, esse número saltou para 6.288, com um repasse de R$ 37 milhões — cifra que ultrapassa o próprio Fundo de Participação dos Municípios (FPM), principal fonte de receita da prefeitura, que totalizou R$ 22 milhões no mesmo ano.
As fraudes envolvem a atuação de atravessadores, advogados e escritórios que, por meio do sistema digital do Ministério da Pesca, solicitam carteiras de pescador sem qualquer verificação robusta. Em muitos casos, o pescador registrado não tem na pesca sua única ou principal fonte de renda — um requisito básico para receber o seguro-defeso.
Cadastros inflados
A disparidade entre o número de registros e a produção pesqueira real acende ainda mais o alerta das autoridades. O Maranhão, que tem mais de 1,7 milhão de pescadores registrados no Brasil até maio de 2025, produziu apenas 50,3 mil toneladas de pescado em 2022, segundo o IBGE, ficando atrás de estados como Paraná e São Paulo, que não têm litoral extenso. Além disso, o estado conta com apenas 621 embarcações cadastradas, o que implicaria mais de mil pescadores por barco — um número flagrantemente irreal.
Outros municípios maranhenses também estão na mira das investigações. Boa Vista do Gurupi, Nova Olinda do Maranhão e novamente São João Batista apresentam registros de pescadores incompatíveis com a estrutura produtiva local, conforme relatório do Ministério da Pesca e da Previdência.
O caso se repete em outros estados da Região Norte. Em Mocajuba (PA), por exemplo, 14,7 mil moradores receberam o seguro-defeso em 2024, enquanto o município possui apenas 15,3 mil adultos — sendo que boa parte trabalha na agricultura, na prefeitura ou nos setores de saúde e educação. A conta não fecha.
Sindicatos e INSS também sob suspeita
O Ministério Público Federal já instaurou procedimentos para apurar fraudes no cadastro de pescadores em sindicatos de cidades como São Luís Gonzaga e São Luís, capital do Maranhão. Há ainda indícios de adulteração no sistema do INSS para concessão do benefício. De acordo com investigações, federações que intermediam os pagamentos retêm até 50% dos valores de forma irregular.
Procurado, o INSS afirmou que apenas gerencia os pagamentos e que a fiscalização não é de sua responsabilidade. Já o Ministério da Pesca informou ter concluído, em 2025, o recadastramento nacional dos pescadores artesanais, paralisado desde 2015. A pasta disse que o novo sistema inclui biometria, validação local e cruzamento de dados, além de modernização e ampliação da fiscalização para evitar fraudes.
A Controladoria-Geral da União iniciou nesta semana uma auditoria em sete estados das regiões Norte e Nordeste, incluindo o Maranhão. O relatório preliminar da fiscalização deve ser divulgado em agosto de 2025.
Segundo com a PF, as investigações seguem sob sigilo.
Crescimento suspeito
O número de pescadores registrados no Brasil saltou de 1 milhão em 2022 para 1,7 milhão em 2025 — um crescimento considerado desproporcional à realidade pesqueira do país. Em 34 cidades brasileiras, os beneficiários do seguro-defeso superam 30% da população adulta, configurando um possível esquema estruturado de fraude em larga escala.
Em 2024, o governo federal desembolsou R$ 5,9 bilhões com o programa, valor que pode ter sido inflado por cadastros falsos, prejudicando quem de fato depende do benefício para sobreviver.