A menina e o sol poente

Foto ilustrativa – Arquivo Google

Do novo romance de Nonato Reis*

O almoço era, para Florêncio Gomes, um ato sagrado, e, exceto por uma emergência, nada o fazia interromper a ceia, que compartilhava sempre na presença da mulher Emília e da filha Amália. A uma da tarde ele fechava a bodega, localizada na parte lateral da entrada da casa, e, em volta da mesa, comandava a liturgia em agradecimento a Deus pelo pão de cada dia, ao fim da qual davam início à degustação, que durava em média 45 minutos. Os moradores do Ibacazinho, sabedores dos costumes da família, jamais a importunava naquele horário, deixando para fazer suas compras ou visitas depois das duas.

Por isso o velho bateu por três vezes à porta do estabelecimento e não foi atendido. Lembrou-se que os povos da zona rural nordestina costumam reservar o início da tarde para a sesta, que se dá logo após o almoço, e então decidiu aguardar em silêncio. Olhou em volta e deu com a mansidão do rio Maracu, que descia preguiçoso na direção do Lago de Viana. “Que obra divina!”, exclamou para si. Fez lembrar o rio Caruá-Una, no estado do Pará, que banhava a sua aldeia Baú, onde passara a infância e parte da adolescência. Chegara ali, sem planos de qualquer espécie, apenas atraído pelas narrativas de aterramento do Maracu, que ouvira de moradores de Viana, no breve período em que se hospedou na cidade. Desde que deixara o Rio de Janeiro, sozinho e amargurado com a sua dor, passou a transitar pelo mundo feito alma penada, ou, para ser mais preciso, como nuvem, que se desloca para qualquer lugar, levada ao sabor do vento.

– Boa tarde, senhor. Qual é a sua graça?

A presença do proprietário da casa o trouxe de volta à realidade, e ele teve um breve acesso de tosse, que controlou sem muita dificuldade.

– Boa tarde, meu senhor. Eu me chamo Solano (…) Solano da Silva, mas pode me chamar de Sol, que é como todos da minha convivência me chamam.

– Prazer, seu Solano. Eu me chamo Florêncio … Florêncio Gomes. O que deseja?

– Eu preciso de um conhaque.

Disse consertando novamente a garanta, o suor escorrendo pela testa enrugada.

O quitandeiro foi até uma prateleira, formada de ripas pregadas na parede de fundo da barraca, e pegou um litro ao meio de São João da Barra.

– Só tenho este, mas é muito forte. O senhor aguenta?

O velho sorriu com ar de superioridade.

– Eu já o conheço de longas datas. Estou acostumado.

Florêncio pegou um copo de vidro de servir cachaça e nele depositou uma dose da bebida, oferecendo-a ao velho, que a bebeu de um só gole, mas não conseguiu devolver o copo, porque uma nova crise de tosse o acometeu, fazendo-o girar preso às muletas, prestes a cair, o que não aconteceu pela intervenção do dono da barraca, que o abraçou com cuidado e o fez sentar-se num mocho, rente ao balcão.

– O senhor não tem condição de beber essas coisas. Precisa de cuidados.

Em seguida gritou pela mulher, pedindo ajuda.

– Emília, venha cá. Depressa!

A mulher assomou à porta, junto com a filha, o semblante ofegante.

– O que foi, homem?

E olhando o velho, o rosto lívido, questionou o marido.

– O que houve com esse senhor?

– Não faz pergunta e traz um copo com água de açúcar.

A custo, o velho parou de tossir e a sua respiração foi se normalizando.

Quando a mulher voltou com a água, ele já sorria e falava calmamente, como se nada tivesse acontecido.

– Me perdoem por esse aperreio. Há anos sofro com esta bronquite, que não me dá sossego, mas eu sei como me livrar dela. Nãos se preocupem.

Florêncio o olhava entre piedoso e desconfiado.

– Já deu para ver que o senhor não é destas redondezas. Parece um homem viajado. De onde o senhor vem, e para onde deseja ir?

Solando esfregou o suor da testa com o braço direito, sorriu daquele seu jeito benevolente e explicou, querendo ser breve.

– Eu venho de longe, meu amigo. Mas não me pergunte para onde vou, porque nem eu sei. Há algum tempo deixei o Rio de Janeiro, onde morei por muitos anos. Decidi andar pelo mundo em busca de brisa e de um lugar para descansar os ossos.  Até aqui não encontrei o que procuro, mas algo me diz que estou perto de alcançar o meu destino.

O velho suava em bicas e Florêncio concluiu que, sozinho, ele não conseguiria chegar a lugar algum. Não naquelas condições.

– O senhor primeiro precisa se alimentar. Está muito fraco. Podemos lhe dar de comer. O senhor gosta de peixe?

E antes que o velho respondesse, completou.

– É fresquinho, pescado aqui mesmo, no nosso rio Maracu.

O velho sorriu como quem ganha um presente valioso.

– Seu Florêncio, eu aceito a sua generosidade com muito bom gosto, porque sinto que é de coração. Tudo o que vem do coração é bom, e não pode ser recusado.

Diante da mesa farta de curimatã, arroz e pirão de farinha de mandioca, o velho Sol fez um breve relato da sua história: a convivência com as comunidades indígenas do Pará, a vida nas ruas de Belém e os longos anos servindo na Marinha do Brasil, que lhe trouxeram alegrias e também tristezas. “Posso dizer, seu Florêncio e dona Emília, que conheci a face iluminada da vida, mas também o seu lado sombrio. Assim não tenho do que me queixar, porque se hoje sou um velho doente, sem eira nem beira, já tive posses e luxo, tal como nosso Joh bíblico.

– Por que você só tem uma perna? Você é um curupira?

A fala de Amélia, que até então se mantinha calada, mas atenta aos relatos do velho, deixou o dono da casa constrangido.

– Filha, não diga isso! Assim você ofende o nosso visitante.

Solano, porém, sorriu a gosto com o desembaraço da menina.

– Minha pequena, talvez eu não seja um curupira, porque, pelo que sei, o curupira é um negrinho que vive nas florestas.

– Ah, e tu já viu um curupira? Eu já!

– Eu vi muito curupira quando criança na Amazônia, e não tinha medo , não, porque para os indígenas o curupira é uma entidade protetora das florestas, uma espécie de vigia contra os inimigos dos povos nativos.

E dirigindo-se a Amélia…

– Mas como era o curupira que você viu?

– Ah, era um negrinho também, e tinha o corpo cheio de cores: preto, vermelho, amarelo, branco e azul.

– Então o seu curupira também era negrinho! Significa que eu, com esta pele branquela e olhos azuis, não sou um curupira, concorda? E depois, que graça teria um curupira velho e gouguento que nem eu?

Os moradores da casa caíram no riso com a conversa entre os dois, mas a menina não se deu por satisfeita.

– Mas por que você só tem uma perna?

De novo Florêncio tentou corrigir a menina, mas Solano se antecipou, risonho.

– É que Deus achou que duas pernas eram demais para mim. Então, decidiu me tirar uma, e eu fiquei assim perneta, andando sobre muletas.

Depois, virando-se para o casal de anfitriões, explicou.

– Foi um acidente de trem, no Rio de Janeiro. Mas essa é uma longa história e neste momento eu não teria condições por causa desta tosse danada. Quem sabe um outro dia?

Florêncio ajuntou, o semblante convidativo:

– Isso só será possível, se o senhor ficar entre nós por mais alguns dias. Assim, poderia tratar essa bronquite e nos dar o prazer da sua companhia. O que acha? É de coração, e como você mesmo diz, as coisas do coração não podem ser recusadas.

O velho ia responder, mas a menina o interpelou.

– Sol, fica aqui em casa. Eu e mamãe vamos cuidar de ti.

Sol não tinha por que recusar. Pela primeira vez, após tanto tempo, sentiu calor humano. Estava entre pessoas que jamais vira, e ainda assim ligado por laços familiares. Era como voltar para casa.

*Jornalista e Escritor

Capítulo de abertura de um próximo romance, ambientado no Ibacazinho. Com lançamento previsto para 2024.

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