Carnaval de Viana – A sinistra e desconhecida Festa de São Belibeu

Por: Flávia Moura

National Geographic

Ele não é canonizado pela Igreja nem reconhecido por qualquer religião. Seu tributo tem momentos que lembram magia negra. Mas, na pobre região da Baixada Maranhense, é o milagreiro São Belibeu quem comanda o Carnaval. Um silêncio inesperado rondava os arredores da casa de seu Antero Aprísio Ribeiro na zona rural de Viana, Maranhão. Era sábado de Carnaval, afinal. E eu queria festa: ali, na vila de Santeiro, Baixada Maranhense – região alagadiça, de calor úmido e sufocante, uma das mais pobres do país -, celebra-se um diferente ritual: a Festa de São Belibeu. A estátua de madeira de um santinho negro tem fama de realizar milagres. Belibeu é o santo da fertilidade. Os íntimos o tratam por Bilico. É moleque e levado, namorador. Morre e não descansa. E instiga uma festa movida a suor, terra, carvão, cachaça, sangue. Um Carnaval visceral.

Pescoço da galinha arracando á dentadas.

Seu Antero tem história, e muita: aos 100 anos, é o festeiro mais antigo da região, o patriarca do Belibeu. Mas estava chateado: a comemoração dessa vez seria num povoado vizinho, Itaquaritiua. “O nosso Bilico tem filho espalhado por aí. No começo, eu emprestava a estátua no ano em que a gente não ia fazer a festa, mas, agora, já faz dez anos que eles esculpiram um”, conta. Os antigos do lugar, como seu Antero, atribuem a Festa de São Belibeu à miscigenação dos índios, nativos dali, com os negros escravos e sua religiosidade ancestral. Além disso, a gente da baixada sempre lidou apenas com agricultura ou extrativismo, principalmente de coco babaçu. Nasce daí uma relação especial com a natureza, cenário do sustento e da espiritualidade. E isso fortalece o afeto às festas populares na região. O tradicional bumba-meu-boi, por exemplo, tem na baixada um “sotaque” próprio, uma forma particular de tocar instrumentos de percussão e dançar.

Depois de ser morta a dentadas, uma galinha é levada para o barracão da comida

As peculiaridades são regionais, mas há algo de unânime a embalar uma boa festa no Maranhão contemporâneo: as radiolas, imensas caixas de som que tocam em volume ensurdecedor uma infinidade de ritmos. E elas já estavam bombando marchinhas no fim de tarde em que cheguei a Itaquaritiua. Sou recebida pelos anfitriões: o casal Pedro Lino Pereira, 65 anos, e Raimunda dos Santos Costa, 63, conhecidos como Pedrinho Curador e dona Mundoca. Eles me contam algumas histórias sobre o santinho antes de me guiar até um barracão, onde, à noite, acompanhamos a ladainha que abriu o Baile de Belibeu. Mal tive tempo de descansar: às 4h30 da madrugada de domingo, personagens centrais da festa já estavam a postos no quintal dos festeiros de Itaquaritiua. Bater de casa em casa, em busca de prendas como animais vivos e bebida, é missão que cabe aos chamados Cachorros, homens e crianças que se pintam de carvão e incorporam os animais: andam de quatro, latem, se lambem e até simulam relações sexuais… Ao lado deles, seguem outros personagens, como o Cachorro Mestre, o Contramestre, a Onça, o Gato Maracajá e o Caçador, acompanhados pelos donos da festa e as Molhadeiras, mulheres cuja função na brincadeira é molhar os Cachorros.

O santinho de madeira, ao final da brincadeira, fica em um altar na casa do
festeiro.

O dia nasce e os homens-cães saem para farejar a terra nos quintais das casas, em busca dos litros de cachaça e de animais domésticos. Quando uma galinha é encontrada, a Onça entra em ação: ela morde o pescoço da ave até que ela morra. O sangue escorre. A cena choca, mas a brutalidade é encarada como parte da brincadeira: quanto mais fiéis eles forem ao comportamento do bicho que encenam, mais sucesso fazem. O percurso só foi terminar perto das 3 horas da tarde. A essa altura, uma completa fantasia tomava conta das pessoas e do ambiente. A vida real parece distante de Itaquaritiua, agora um mundo habitado por homens-bichos besuntados de sangue, carvão e barro.

O traço indígena dos moradores da comunidade de Itaquaritiua, na Baixada
Maranhense.

Quando o grupo dos Cachorros volta ao barracão, a Onça é morta pelo Caçador e toda a comunidade assiste à retirada do couro dela, negociado entre os festeiros. Mais tarde, o jantar dos Cachorros é servido – arroz e farinha acompanham as carnes que foram recolhidas ao longo do dia. Enquanto a noite cai, porém, corre o boato de que o Belibeu adoecera. Estava com febre. Os festeiros precisam providenciar remédio. Nessa hora, chegam ao barracão mulheres que, em fase de lactação, vêm doar o leite de seus filhos ao santinho. A estátua mama, e as mulheres orgulham-se de seu papel, uma retribuição ao milagreiro que lhes atende pedidos de saúde, de boa safra e, principalmente, de fertilidade – Belibeu tem seu sexo esculpido de modo, digamos, a destacar-se em seu pequeno corpo. “Ele também já me curou de um ouvido inflamado”, conta a dona de casa Maria Meireles, 30 anos, que acredita ter ganho um filho apenas depois de pedir ao Belibeu. A ajuda de nada adianta. Belibeu piora e morre. Homens, mulheres e crianças entram num pranto profundo enquanto a “sentinela”, o velório, é preparada. As marchinhas de carnaval, contudo, não páram. À meia-noite de domingo, todos participam do enterro, embaixo de um mastro que havia sido erguido em louvor a ele.

A Onça, personagem-caçador da festa, segura a estátua de São Belibeu

Durante a cerimônia, as luzes dos candeeiros se apagam. Nessa hora, alguém rapta o santo e o esconde. Um enterro é simulado sem o corpo presente. Dois dias depois, porém, a imagem reaparece no altar da casa do festeiro. Ali ela ficará durante todo o ano, recebendo visitas dos devotos. É um tempo em que o Bilico se mantém sereno. Não brinca. Não provoca. Tudo bem: no próximo Carnaval, ele despertará para brindar a Baixada Maranhense com uma festa que mais parece saída de um conto de realismo fantástico.

Por: Flávia Moura | Fotos: Albani Ramos | Matéria publicada na revista National Geographic Ed. 83 – 01/02/2007

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