O velho Sol e as fábulas que embalaram a infância de Amélia

Nonato Reis*

Amélia ajustou o pensamento a um plano imaterial e a imagem de Sol a tomou nítida, como nos velhos tempos, em que ele a pegava no colo e os dois se perdiam em meio a perguntas e respostas de fundo existencial. Aprendera a gostar de Sol logo aos primeiros dias, quando tinha os seus pais vivos e podia gozar da segurança de uma família. Durante o tempo em que ele ficara hospedado em sua casa, tomou-lhe afeição, atraída pelo seu carisma e o jeito de narrar histórias, imitando a fala e os gestos dos personagens. Ela preferia as fábulas de onça e coelho, que ele contava como se estivesse num palco.

“Onça e coelho se diziam amigos. Um dia ela pariu três oncinhas e precisou de alguém para cuidar dos filhotes, porque tinha que trabalhar. Mas todos os bichos a quem recorria se negavam a aceitar a proposta que ela oferecia. Alegavam os mais diversos motivos, desde falta de tempo a problemas de saúde. No fundo, a causa da recusa era o medo que o felino despertava na bicharada. Onça não era dada a cumprir acordo, e, como na natureza a lei do mais forte se impunha como um dogma, ninguém ousava fazer acordo com ela.

Foi então que, já cansada e desanimada, decidiu fazer uma última tentativa. Procurou coelho em sua toca e gritou à beira do buraco:

– Ô coelho, chegue cá que tenho uma coisa boa para te propor”.

Entre desconfiado e sonolento, coelho botou a cara do lado de fora do buraco.

– O que a senhora quer comigo?

Onça foi direto ao assunto:

– Coelho, vamos morar juntos. Você cuida dos meus filhos que acabaram de nascer e trata de arranjar a comida, enquanto eu trabalho e resolvo os problemas fora de casa.

Coelho, muito mais amigo de si mesmo do que de onça, vendo a oportunidade de se dar bem, aceitou o convite de bom grado, o que deixou onça feliz da vida. Agora podia se dedicar à missão de fiscalizar a floresta, sabendo que seus filhotes estariam em segurança. O que ela não sabia é que, sob a guarda de coelho, as oncinhas estariam com os dias contados.

O acordo de convivência pacífica entre ambos duraria apenas três dias, tempo suficiente para coelho dar cabo dos três filhotes. A cada dia, sem disposição para caçar, mas tendo assumido o compromisso de prover a casa de alimento, coelho optou pelo caminho que lhe pareceu mais prático e menos cansativo. A cada dia matava uma oncinha e preparava o cardápio, que a matriarca se esbaldava, levada pela lorota de coelho de que se tratava de uma caça especial que conseguira abater.

Amélia reclamava:

– Ah, Sol, que coisa feia. Como ela podia comer os próprios filhos e ainda gostar da comida?

– E como ela ia saber que se tratava dos seus filhos, se coelho mentia, descaradamente?

O certo é que onça devorava a refeição e não se cansava de elogiar os dotes de caçador do parceiro.

– E na hora dos bichinhos mamarem, ela não percebia que faltava oncinha?

– Coelho recorria a um estratagema.

Amélia se remexia impaciente.

– O que é estratagema?

– É uma mentira que você conta para enganar o outro.

Amélia sorria e pedia que ele continuasse.

– No primeiro dia, ele trouxe em sequência os dois filhotes sobreviventes. Quando onça solicitou que lhe trouxesse a terceira oncinha para dar de mamar, repetiu o gesto com a primeira cria, que, saciada, sequer pegara o peito, o que gerou preocupação da mãe.

“Ô coelho, essa aqui não mamou quase nada, o que houve com ela?”

Coelho desconversava.

“Ah, tia onça, essa oncinha bebeu água demais. Olha o bucho dela como está esticado! A coitadinha tá sem fome.

E assim ele levou o seu plano diabólico até o terceiro dia, quando deu cabo da última oncinha.

A menina arregalava os olhos.

– E como coelho conseguiu escapar, quando a onça descobriu o que ele fez?

– Foi moleza. Ele serviu a comida de onça, e enquanto ela saciava a fome, foi lá dentro do quarto, pegou a sua sacola de roupa que já estava arrumada, e fugiu pela porta dos fundos, sem deixar rastro. A partir desse dia, onça jurou matar coelho e se lançou numa caçada sem fim, mas coelho, esperto, sempre dava um jeito de se safar”.

Tinha também a estória do Cavalo Peidão, que arrancava gargalhadas de Amélia.

(…)

“Era uma vez, um velho alazão, que comia demais e trabalhava de menos. O dono até tentava impor disciplina ao animal, mas, depois de um certo tempo, vendo que o cavalo não levava jeito para a lida no campo, decidiu dar a ele uma tarefa menos pesada. Deveria fiscalizar o milharal da casa grande, constantemente atacado por uma população de macacos. O cavalo, sempre priorizando os prazeres da mesa, enchia primeiro a barriga de milho, antes de se colocar a postos, na observação. Não demorava muito, o estômago devidamente saciado, dava uma sonolência, tudo parecia girar de um modo mais lento, distante, e ele acabava dormindo, para a alegria da macacada que, assim, podia saborear as espigas, sem a importunação de estranhos. Um dia, tendo se empapuçado com uma torta de jabiraca moída, o cavalo sofreu indigestão e danou-se a peidar. Os macacos, vendo-o deitado como de costume, imaginaram que o bicho estivesse dormindo, e partiram para o ataque ao milharal. Acabaram surpreendidos em plena farra pelo cavalo, que investiu contra eles, soltando peido e dando coices a torto e a direito, até dar cabo do último invasor. O dono da plantação, agradecido com a performance do seu animal, deu-lhe o apelido de Cavalo Peidão e decidiu aposentá-lo da lida diária. Daquele dia em diante o cavalo passou a levar uma vida de príncipe, comendo e bebendo do bom e do melhor, sem precisar fazer qualquer esforço”.

No colo de Sol, a menina ouvia os relatos, a princípio interessada, prestando atenção em cada detalhe. Depois dava uma moleza, o olhar sobre o ambiente do quarto, lentamente, se dispersava… até quase adormecer… Quase, porque nessas horas, Sol lhe dava tapinhas nos braços e a despertava para a última obrigação da noite.

– Acorda, mocinha, que chegou a hora de rezar e pedir a proteção do seu anjo da guarda, para que a sua noite seja calma e segura, como as águas mansas do rio.

E começava o ritual.

“Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome (…).

 

*Jornalista | Escritor

Capítulo 9, do romance A MENINA E O SOL POENTE, em processo de edição. Com lançamento para novembro 2024.

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