Por Nonato Reis*
Nôra não cabia em si de saudade, e a presença de Amélia, tão próxima de Sol e há anos ausente, só fazia aumentar o peso da melancolia e a necessidade de resgatar os anos vividos na companhia do velho.
– Dizem que não se pode mudar o destino das coisas, que Deus escreve certo por linhas tortas, mas se eu pudesse voltar lá atrás, tem uma coisa que eu faria.
– O que, tia?
– Evitar que ele fosse morar sozinho naquele casebre do Porto do Padre, um lugar assombrado e maldito, que empurrou Linda para a morte trágica, e depois deu a ele o mesmo destino. Ele tinha que viver comigo ou com os teus pais. Florêncio errou, e eu também, de ter permitido aquela asneira. Onde já se viu, um velho doente, vivendo sozinho naquele lugar medonho.
Para Amélia, aquilo era contraproducente. Ainda que fosse possível voltar o tempo e tentar refazer algumas atitudes, não havia como mudar as decisões do velho Sol, especialmente quanto a deixar a casa de seus pais e ir morar no Porto do Padre. Sol era do tipo que acolhia, mas tinha dificuldade em aceitar qualquer tipo de ajuda. Simplesmente não admitia se tornar dependente de quem quer que fosse, e isso ela acreditava que tinha a ver com o acidente de trem que, se não era a causa primária, devia ter um peso determinante. Aquilo marcara a alma dele, e a prova era o seu desconforto em falar do episódio. Sempre que instado a rememorar aquela passagem de sua vida, usava o mínimo de palavras e dava um jeito de mudar de assunto.
Sol chamara a atenção dela desde que chegara à sua casa amparado em um par de muletas. Até então nunca vira ninguém perneta, e aquilo despertou a sua curiosidade. Sempre que ficava a sós com ele, esse era o tema preferencial da conversa entre ambos, para desconforto de Sol. Falar do acidente era como reviver a dor em toda a sua extensão, tanto física quanto moral. Se fosse com um adulto, mudaria o rumo da prosa sem maiores delongas, mas não podia ser descortês com uma menina, ainda mais filha do casal que o recebera na casa deles, como se fosse um membro da própria família.
– Por que te tiraram uma perna?
– Ela ficou doente, e não quis mais continuar comigo.
A menina arregalava os olhos.
– Ela foi para onde?
– Para onde se vão os mortos.
– Enterraram ela?
– Sim. Do mesmo jeito que acontece quando alguém morre.
– Mas por que ela adoeceu?
O velho sorria sem graça e se esforçava por demonstrar naturalidade.
– Eu já falei sobre isso no primeiro dia em que cheguei na tua casa, mas vou repetir. Fui descer de um trem no Rio de Janeiro, perdi o equilíbrio e acabei ferindo o calcanhar, que inchou, criou pus, e teve que ser cortado.
– Mas por que cortaram a perna toda?
– Por que a doença não ficou só no calcanhar. Ela foi subindo, subindo, até chegar aqui.
E mostrou com o dedo indicador a parte que sobrara do membro amputado.
A menina fitou o velho assustada.
– Se a doença subisse mais tu perdia a barriga?
– Sim, e perdendo a barriga, o Sol perderia a vida também. Mas Deus, sendo generoso, não me deixou morrer, sem antes conhecer uma menina muito bonita e também curiosa.
Ela sorria e o beijava no rosto enrugado.
O aspecto físico era apenas um detalhe no conjunto da obra que fazia de Sol um personagem épico. Seu corpo depauperado contrastava com uma alma resplandecente. Tinha um vasto conhecimento de mundo e dos mistérios da vida. Pela convivência com ele, aprendera o conceito de justiça, que era diferente do entendimento comum. Para Sol, justiça é algo que extrapola o campo normativo das leis, quase sempre falho (como toda ação humana) e alcança os domínios do coração. Se um homem não ama verdadeiramente o seu próximo, tal como preconizado pelo Cristo, não pode ser justo, porque o que determina uma atitude imaculada é a qualidade do sentimento. Sol tinha o coração generoso, mas isso não o levava a agir com parcialidade, nem passar a mão na cabeça daquele que errara ou mesmo dizer sempre “sim” aos que o procuravam, pedintes de ajuda. “Para ser justo o homem precisa avaliar o mérito”. Ela fazia cara de desentendida, e ele se obrigava a recorrer à religião. “Lembra da oração do Pai Nosso (…) ‘perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido’. O perdão requer uma contrapartida. Assim é a justiça”.
Amélia lembrou-se do dia em que a cabana do velho ficara apinhada de moradores do Ibacazinho, todos querendo que ele intercedesse junto às autoridades de Viana, para resolver pendências de serviços públicos, como água encanada, posto de saúde, transporte, nomeação de professores e até merenda escolar. Todos falavam ao mesmo tempo, cada um reivindicava uma coisa e o ambiente virou uma babel. Até que o velho decidiu botar ordem na casa, com um simples levantar de mão. Depois, com aquela calma que lhe dava a aparência de um sábio, dirigiu a palavra a todos, com uma franqueza desconcertante.
– O que vocês querem eu não posso dar, nem atuar para que lhes seja concedido. Vocês procuram um salvador da Pátria. Alguém que pegue os seus problemas e resolva. Salvadores da Pátria existem apenas nas obras de ficção. Nada vem de graça. Se vocês querem ter uma vida melhor, precisam se organizar e agir como comunidade. Sozinhos ou em bloco, como manadas de gado, estarão condenados à penúria e reduzidos à condição de pedintes.
Zé de Aniceto intercedeu.
– Mas Sol, você é o nosso líder. Não pode deixar a gente na mão.
– Seu Aniceto, líder não resolve nada sozinho. Líder orienta. Estimula a se unir. Veja o caso de Linda, de saudosa memória. Ela passou anos de sua vida, lutando para que vocês entendessem a necessidade de somar esforços contra o aterramento desse rio. O Maracu foi salvo, graças a vocês, e não apenas pela ação de Linda. Não fosse por vocês, a luta de Linda teria sido em vão. Não é possível que não tenham entendido a lição.
Nôra acolheu.
– Isso é verdade mesmo. A Linda ajudou muito, mas o rio só se salvou, quando nós formamos aquele cordão diante do prefeito. A luta dela foi fazer a gente acordar, o mesmo que Sol está fazendo agora.
Um morador da Palmela, de nome Dicó, levantou o braço e falou, a voz alterada.
– Linda nunca abandonou o seu povo, e o senhor, seu Solano, não pode também nos abandonar agora. O senhor tem que acompanhar nós até a Prefeitura e falar lá com o prefeito por nós.
Sol rechaçou.
– Orientar a luta de vocês por melhorias, eu posso. Tomar a frente, não.
Nôra reagiu.
– Por que não, Sol? Linda tomava a frente, ia pra briga.
– Por três motivos. Eu não sou Linda, eu estou muito velho para encabeçar manifestações, e terceiro, o cabeça deve ser alguém entre vocês.
Tião Xoxota trovejou.
– Mas por que o cabeça não pode ser tu, homem? Ao menos falar por nós tu podia.
– Vocês precisam de alguém jovem, cheio de energia, para levar essa causa adiante. Até quando eu estarei com vocês, já pensaram nisso? Eu quero evitar que vocês vivam esse vácuo de liderança deixado por Linda. Isso aconteceu porque ninguém se preparou para assumir o lugar dela.
Zé de Aniceto falou em tom de lamento.
– Sol, sem o senhor nós não somos nada. Estaremos perdidos.
– Engano seu. Vocês só se perdem, se não se unirem.
– Quem nos garante isso?
Sol então recorreu a uma alegoria. Pegou um caniço de pescar piranha, colocado a um canto da parede da sala, e disse:
– Zé, vem cá!
Diante do grupo, o velho entregou o caniço ao homem e ordenou que ele o quebrasse ao meio.
Zé ficou indeciso, e o velho o instigou.
– Tenta quebrar!
O caniço então se partiu facilmente.
– Agora junta os pedaços e tenta quebrar novamente.
Zé quebrou de novo o caniço, mas com certa resistência.
– Junta novamente os pedaços e tenta quebrá-los.
Zé tentou, mas não conseguiu.
O velho então se dirigiu ao grupo, e falou de forma categórica.
– É isso o que acontece quando as pessoas se unem. Isoladas, podem vergar à primeira dificuldade. Juntas se tornam poderosas. Já ouviram falar que a união faz a força? Aqui está a prova.
Absorvida naquela tela imaginária do passado, Amélia ouvia a voz de Nôra, mas não assimilava o que ela dizia, porque o seu pensamento estava longe dali ou, para ser mais exato, num tempo distante. Tempo em que a vida era mais simples e ela não precisava se preocupar com o futuro. Não precisava temer as vicissitudes da vida, porque Sol estava sempre ao seu lado, como um escudo protetor. E ainda que jamais tomasse decisões por ela, suas palavras eram como farol, iluminando a estrada, indicando a direção.
A metros adiante, os olhos fixos no rio, Nôra, igualmente ausente, sequer poderia imaginar as cenas que desfilavam pelo cérebro de Amélia. Detendo-se sobre um velho pé de criviri, quase à beira da água, a sua face contraída era só melancolia.
– É como ver ele remando a sua canoinha até o pé dessa árvore, vindo sabe-se lá de onde, à procura de terra e abrigo. Aqui, neste lugar, fincou raízes, como esse crivirizeiro. Depois de Amaralinda, que nos deixou tão cedo, foi o nosso melhor amigo, sempre com a mão estendida para nos ajudar com uma palavra de conforto ou de esperança. Sem o Sol, mergulhamos no desânimo. Não há mais luz, nem caminhos para seguir. Só incerteza.
…
Capítulo inédito do romance A menina e o Sol poente, com lançamento previsto para setembro.
*Jornalista | Escritor