Tião Xoxota e os casos de aparição do Porto do Padre

Por Nonato Reis*

Imortalizado no romance “A Saga de Amaralinda”, por servir de cenário para a história de Linda e Eugênio, o Porto do Padre ficava num ponto de recuo do rio Maracu, de frente para uma croa, onde o rio se divide em dois braços, formando uma espécie de bifurcação.

Pela direita afunila à semelhança de um córrego, que seca no verão e, no passado, servia de estrada para carro de boi. Por ali chegava-se à Mutuca, – canal aberto pelo braço escravo – a 100 braças da Fazenda Bacazinho ou Fazenda da Santa. Pela esquerda o rio segue um traçado sinuoso, mais caudaloso, até atingir as Colhereiras, na direção de Matinha, cidade a 21 quilômetros de Viana, para desaguar no Lago do Aquiri.

O Porto do Padre recebera essa denominação na época da missão jesuítica de Conceição do Maracu, na penúltima década do século XVII, embrião que dera origem à cidade de Viana. Ali os jesuítas, com o auxílio de tribos indígenas que habitavam o local, ergueram a Fazenda São Bonifácio do Maracu, dedicada à criação de gado bovino e plantação de cana de açúcar, para fins de extração do açúcar, à época principal produto de exportação da Colônia.

Na verdade os jesuítas chegaram ali, não apenas movidos pelo dever missionário da Ordem de Jesus (o projeto evangélico-mercantil de Monção, primeira investida inaciana nas terras do Maranhão, dava sinais de falência, e era preciso experimentar novos territórios),  mas principalmente incitados pelos boatos da existência, nas bacias dos rios Pindaré e Turiaçu , de minas de pedras preciosas.

Assim, foi a corrida pelo ouro, e não propriamente a conversão de ímpios em cristãos, que deflagrara a odisseia de padres das mais diferentes ordens religiosas no norte do Brasil.

O porto foi o escoadouro natural das riquezas produzidas na Fazenda São Bonifácio do Maracu, de onde as embarcações partiam abarrotadas de açúcar, mel, farinha e carnes, depois de deixarem ali as especiarias trazidas da capital, São Luís, originárias da Europa.

Era um lugar belíssimo – e a lâmina dágua, de tão tranquila, dava a impressão de uma superfície sólida – porém estranho, que parecia concentrar algo sobrenatural.

Da estrutura física do porto, construído sobre um teso, nada mais restou. Até pouco tempo atrás o lugar achava-se recoberto por uma vegetação rala e permeada por grandes árvores, como mangueiras e crivirizeiros.

Tião Xoxota, em que pese alardear a sua fama de não temer espíritos, fazia de tudo para desviar a rota dali. Nas poucas vezes em que cruzara o porto, afirmava sentir algo estranho, como que abduzido para outra dimensão.

Os moradores mais antigos contavam histórias de arrepiar os cabelos, ocorridas ali. Como a de um pescador que, após lançar as redes no rio, numa noite escura feito breu, foi surpreendido com dois peixes gigantes que se debatiam presos às malhas do apetrecho. Imaginando tratar-se de dois surubins, correu para apanhar os peixes, mas o que viu o deixou perplexo, abobalhado.

Dois homens, um padre e um negro nus se atracavam numa luta renhida. O negro agarrado ao padre por trás mordia-o feito uma fera e dele arrancava lascas de carne do pescoço e das costas, para o desespero do religioso, que tentava escapar do martírio usando uma linguagem messiânica. “Não mata o padre, que é redentor, corpo e sangue de Deus”.

Para sempre o pescador perdeu os sentidos e o juízo. Morreu acorrentado dentro de casa, uivando e se mordendo.

Houve também o caso de Biné, um músico que chegara ali atraído pelo amor de uma moradora do lugar, que conhecera em Guimarães. Com ela casou e fixou moradia na beira do rio, próxima ao Porto do Padre.

No inverno Biné gostava de pescar bagrinho na Mutuca, aproveitando as noites sem lua. Um dia os bagrinhos sumiram das águas. Já tentara diversos pesqueiros e nada. Nenhum peixe para contar estória.

Já desanimado, decidiu ir embora, mas ao passar em frente à croa avistou uma boca de mato, aberta como que por encanto, pois não se lembrava de tê-la notado antes, e resolveu fazer uma última tentativa. “Quem sabe aquele pesqueiro seria a redenção da noite”, pensou consigo.

Acomodou a canoa no labirinto entre as árvores, colocou a isca no anzol e começou o ritual para atrair os peixes (tocar levemente a isca na superfície da água, num ruído agudo e intermitente).

Notou, porém algo estranho no atrito da isca com a água. Como se a isca presa ao anzol, ao invés de tocar a água, batesse na lama. Várias vezes acendeu a lamparina e observou em volta, sem nada encontrar.

Agoniado e impaciente com aquele ritual, enfiou a mão na água no escuro com raiva. Agarrou uma coisa parecida com cabelos e a puxou para a superfície. Deu de cara com a cabeça de um índio que emergia da lama em meio a borbulhas de lama. Foi encontrado no dia seguinte no matagal, rezando “Ora pro nobis”.

Tião, que costumava ouvir aqueles relatos com um misto de atenção e desconfiança, decidiu intervir.

– Um índio, enlameado, que nem porco, saindo do fundo das águas? Não é possível.

O pescador empacou.

– Por que não, seu Tião?

– Índio é o bicho que mais sabe nadar. Se duvidar nada mais do que peixe. Não vai morrer afogado, que num é besta.

O pescador tentou esclarecer.

– Mas quem disse que morreu afogado? Tava ali, não se sabe como… era coisa do demo.

Tião ajeitou o chapéu, com ar de superioridade.

– Aí mesmo que não dá para fiar essa história. O índio do tempo dos jesuítas seguia os padres que nem cachorro atrás de cadela no cio. E se os padres tinham parte com Deus, os índios também deviam de ter.

O pescador fez cara de brabo.

– Então o senhor acha que eu sou um mentiroso, seu Tião?

– Homem, eu não acho não. Tenho é certeza. O senhor devia era levar umas panadas de facão no lombo, para criar vergonha.

Depois ajeitou novamente o chapéu na cabeça, cuspiu uma gosma de fumo de rolo, e virou as costas para o pescador. Não sem antes dar-lhe um aviso:

– Da próxima vez que o senhor olhar um índio enlameado, trate de curar a cachaça primeiro, antes de ficar espalhando lorota.

Foto do Porto do Padre (a croa em destaque), em perspectiva para a cidade de Viana.

Do livro As aventuras de Tião Xoxota, em processo de edição.

 

*Jornalista | Escritor

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O Editor

Graduado em Jornalismo, Luiz Antonio Morais é pós-graduado em Design Gráfico e Publicitário. Mantém o blog desde 2008, um dos mais antigos do Estado.

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