Nonato Reis*
A era disco chegara com a força de um tufão. Impulsionada pelo filme The Saturday Nigth Fevers, estrelado por Jonh Travolta, muito mais dançarino do que propriamente ator, a discoteca percorreu o mundo, varreu os cinco continentes, chegou aos mais remotos lugares. Mesmo esquecido em um ponto longínquo do mapa da América do Sul, o Ibacazinho não passaria incólume por aquele vendaval.
Do dia para noite, feito um relâmpago, os discos da Jovem Guarda, onde reinavam Roberto Carlos, Jerry Adriane, The Fevers e Odair José, foram deixados de lado, para darem lugar ao som eletrizante de Tina Turner, Bee Guess, Donna Summer, Tina Charles, Olivia Nilton Jonh.
O ritmo chegou impondo mudanças profundas, especialmente na forma de interpretação, que sugeria uma dança frenética, que provocava ondas elétricas na corrente sanguínia.
Ao contrário da Bossa Nova e da Jovem Guarda, e mesmo do brega, que àquela época já tinha espaço nos barracões de festa da zona rural maranhense, com Amado Batista e Reginaldo Rossi, a discoteca primava pelo bailado, em detrimento da letra da música, que poucos sabiam traduzir, algo considerado irrelevante.
O importante agora era ter elasticidade e jogo de cintura, acompanhar os movimentos do som com a destreza de um dançarino que se preza.
Nesse contexto, Tião Xoxota, tido como um pé de valsa para o ritmo cadenciado e monótono da época, se viu perdido. Aquilo não era coisa de homem. Onde já se viu ficar dançando desgarrado, rebolar a bunda e remexer a barriga daquele jeito? Só podia ser obra de algum baitola. “Comigo não dá. Macho tem que ser macho”.
Acontece que o novo ritmo chegara para ficar, e ditou o comportamento do lugar. Os homens então passaram a usar tamancos de até dez centímetros de salto, calças boca de sino, camisas em cores fortes e cabelo black-power.
Tião, com seus cabelos lisos atirados aos ombros, da herança ancestral indígena, não teria como seguir o modismo, ainda que quisesse. Porém, sem poder ignorar a norma que passava a imperar nos salões de festa, decidiu ingressar naquele universo estranho, ainda que a seu modo, como a serpente que se desfaz da pele, mas mantém a essência.
No chão de terra batida, transformado em passarela de dança, repleto de luzes e jogos de pisca-pisca, onde as pessoas assumiam a forma de vultos satitantes, Tião, chapéu de palha na cabeça e cigarro de fumo de rolo na boca, foi andando desconfiado, a cara amarrada, procurando alguém que lhe servisse de par.
Deu de cara com Maria Branquinha, uma parente distante, que, eventualmente, “ficava” com ele durante as sessões de radiola. Ao ver o parceiro colocou os braços sobre o pescoço dele e começou a rodopiar, fazendo evolução da cabeça aos pés.
Branquinha rebolava ao redor de um Tião estático que a fitava com ar de reprovação. Aos berros no ouvido, exortou o companheiro a entrar no clima de Tina Turner.
– Homem, te mexe! Tá parecendo uma melancia verde.
– Melancia verde é a tua bunda. Não sou viado pra ficar remexendo o rabo.
Nisso, um homem que se movimentava ao lado deles tomou as dores.
– Nem todo viado remexe o rabo…
E antes que Tião reagisse, o homem completou.
– Tu, por exemplo, não rebola, mas carrega uma coisa de mulher nas costas. Vai dizer que é macho?
Tião, que tinha o pavio curto, nem se deu ao trabalho de gastar saliva. Arrancou o facão americano que trazia, invariavelmente, preso ao cós da calça e foi distribuindo panadas de facão pelo corpo do desafeto que, assustado, atirou-se no meio da multidão comprimida no espaço de dança.
Foi uma confusão danada, com gritaria e gente tentando escapulir pelas letarais da ramada. Como sempre acontecia nessas ocasiões, a arruaça foi parar na única delegacia da cidade, localizada no lugar chamado Muquiço.
Reunidos os valentões em volta de sua mesa, o delegado Alfredo, que já conhecia Tião de “outros carnavais”, dirigiu-se, logo, a ele:
– Seu Tião, o senhor de novo aqui!!
– Não é do meu querer, seu delegado.
– Ah, não é. O senhor me cai de panada de facão no cidadão aqui, e não é do seu querer.
– Acontece que ele me destratou. Me chamou de maricas…
Nisso, o homem, ao lado, interveio.
– E é mentira? Isso que tu carrega nas costas é coisa de homem?
– Não, não é. É a coisa da tua mãe, que eu carrego.
Vendo que o caldo começava a engrossar de novo, o delegado decidiu botar ordem na casa.
– Vocês fiquem quietos, porque eu mando os dois dormir na cheirosa.
Depois, com o silêncio de volta ao ambiente, achou por bem dar o caso por encerrado, afinal, tinha coisas mais urgentes para se ocupar.
– Vocês estão liberados, mas vão ter que cobrir o prejuízo causado ao dono do estabelecimento. Só de garrafas quebradas deve dar uns cinquenta contos. Vejam o somatório com ele e dividam em partes iguais. E ai de vocês se não pagarem o homem.
E dirigindo-se a Tião, avisou:
– Dá próxima vez trata de te divertir, e deixa de provocar os outros, sejam eles homens ou veados, até porque, com esse negócio de mulher nas costas, o senhor não está em condições de censurar ninguém.
…
*Jornalista | Escritor
Do livro As Aventuras de Tião Xoxota, previsto para 2026.