Tião Xoxota negou fogo e botou a culpa na mulher

Por Nonato Reis*

A coisa aconteceu de forma inesperada e no pior momento. Foi numa noite de lua cheia, o céu tomado de estrelas, o “Caminho de São Pedro” resplandecente, naquele emaranhado de pontinhos brilhantes, que refletiam sobre as águas do Maracu, formando uma extensa estrada leitosa.

Tudo conspirava a favor de uma cena de reconciliação em grande estilo, como jamais vista.

Em sua casa de chão batido, de frente para a nascente do rio, Tião Xoxota se preparara a caráter para receber de volta a mulher que conquistara o seu coração com a força de um Vesúvio em erupção. Não fora um retorno fácil. Pelo contrário, resistiu o quanto pode a baixar a guarda. Afinal, nenhuma outra mulher tivera o topete de abandonar o lar, e ainda por cima fazer queixa contra ele na delegacia, sob a acusação, sem pé nem cabeça, de a ter agredido, o que lhe rendera três noites de cadeia.

Mesmo tendo razões de sobra para quebrar a venta de Marlene, jamais faria isso, pois aprendera com o pai, Cajueiro O Grande, que homem não bate em mulher nem mesmo com uma rosa. Aquilo é terreno sagrado, que só ao coração é dado transitar. De forma que o episódio da traição de Marlene marcara a sua reputação de homem de forma indelével, e ele decidira nunca mais dar ouvido ou voz a ela

Acontece que “nunca” é uma palavra fora de lugar. O tempo, esse velho mestre da vida, se encarregaria de colocar as coisas em seus devidos encaixes, e Tião, antes determinado a seguir seu rumo sozinho, acabou cedendo a que Marlene voltasse a dividir o seu leito conjugal.

De modo que aquela noite tinha tudo para ser maior do que qualquer coisa que já tivesse vivido. Assim, cuidou de cada detalhe, para que o conjunto da obra ficasse perfeito. A começar pelo corpo, muito bem lavado nas águas do Maracu, e depois perfumado com seiva de alfazema. A barba e os cabelos aparados, como convém a um amante que se preza. Não esqueceu pormenores, como a garrafa de Sangue de Boi e dois copos sobre a mesinha de cabeceira.

Marlene também fizera a sua parte. Chegou na hora combinada, trajando vestido de chita estampado e os cabelos para trás em rabo de cavalo; o rosto numa leve maquiagem e as unhas pintadas; também decidiu usar uma calcinha preta de renda, para apimentar o bailado carnal. E numa demonstração de que guardara os hábitos do ex-companheiro, trouxera-lhe um maço de charutos, que ele tão bem apreciava.

Como os sons de uma orquestra, o clima era de perfeita harmonia, e nada, nada mesmo fazia suspeitar o contrário. Só que na hora H, naquele momento em que os adereços ficam para trás e o que importa é a mecânica dos corpos, nesse momento o motor deTão perdeu força e morreu. Mas morreu de não mais ter jeito – uma cena inaudita, que ele jamais imaginou presenciar.

A mulher ainda tentou reanimar o falecido. Quem sabe uma carícia aqui, uma brincadeirinha ali, um jogo de faz de conta acolá … Quanto mais mexiam na coisa, mas ela perdia volume. Tião, agoniado da vida, numa tristeza de fazer dó, pediu a Marlene que fosse embora; precisava ficar a sós consigo, entender a razão daquele infortúnio.

Na solidão do quarto, rebobinou o filme de sua vida, cena por cena, e chegou à conclusão que aquilo só podia ser obra de Marlene. Aquela mulher tinha parte com o demônio. E lembrou do dia em que, morta de ciúme, tentara envenenar a filha do padeiro, ao flagrá-la na rede aos beijos com Tião.

Na hora, Marlene não disse nada, fingiu até que perdera o interesse por ele; porém, ardilosa, foi até a cozinha e preparou uma xícara de café, que oferecera à menina, fingindo boas maneiras.

A sorte da garota foi perceber, misturados ao café, na superfície da xícara, os grânulos do raticida. Tião raciocinou: quem tem coragem de tirar a vida de uma pessoa não é capaz de assassinar um pinto já em estágio de aposentadoria? “Pois sim, eu é que não duvido de nada vindo da parte dela”.

Determinado a esclarecer a morte misteriosa do companheiro de farra, Tião foi ter com o primo Dourado, afamado curandeiro, que contabilizava em sua biografia verdadeiras façanhas, como a cura de uma adolescente que, possuída do demônio, tocara fogo na própria casa, antes de desaparecer numa floresta de marajá e tucum, repleta de cobras venenosas. Depois de uma semana, sem o menor vestígio da moça, todos a davam como finada.

A família então recorreu ao curandeiro que, após alguns minutos batendo o atabaque à beira da floresta, resgatou a mulher sã e salva, sem nenhum arranhão pelo corpo.

A conversa entre Tião e Dourado não foi nada agradável. Após ouvir a história do primo, o curandeiro descartou qualquer participação de Marlene no episódio da morte do pinto, que atribuiu a uma circunstância peculiar de Tião – a tal saliência que ele carregava nas costas, para o seu desencanto.

– O que uma coisa tem a ver com a outra?

– Tem que essa coisa aí atrás significa que uma metade tua é homem e a outra metade é mulher.

Tião quase teve treco.

– Que loucura é essa?

Dourado explicou que apenas reproduzia o que os espíritos o ditavam.

– Eles estão me dizendo que a tua metade homem deixou de existir e que a partir de agora tu passa a ser mulher.

Tião era a imagem da incredulidade.

– Pois me dá uma prova que isso é verdade!

– Olha, as entidades te aconselham a deitar com outro homem. É a prova dos nove.

– Dos nove?

– Se o teu pinto continuar morto, esquece o que te disse aqui. Mas se ele ressuscitar, aí tu já podes usar vestido e salto alto.

  • Jornalista | Escritor – Do livro “As aventuras de Tião Xoxota”, em processo de edição.

2 Responses

  1. Muito bom amigo ….parabéns gostei. Divertido, cômico e uma das histórias tipicas do nosso Brasil dos brasis..
    Permita – me amigo que aí no texto logo no início o nome Tião ficou Tão….claro problema de corretor que nós que escrevemos não vemos e outros olham…Como sempre você merece os parabéns em tudo que escreve.

    1. Boa tarde, amigo. Obrigado pela participação e pelos elogios. Só lembrando que o texto é assinado pelo nosso amigo, conterrâneo, jornalista e escritor Nonato Reis. A postagem contém a foto e os créditos do autor. Obrigado. abraço!

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